Por que adaptar um clássico? No caso de Jorge Furtado, levar ao cinema a peça “Rasga coração”, cuja versão para as telas estreia nesta quinta, 6/12, foi um misto de obsessão pessoal e momento histórico.
O diretor de “Ilha das Flores” (1987) e “Saneamento básico: O filme” (2007) sempre quis filmar a obra final de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) — que o gaúcho assistiu na primeira montagem, em 1979 (“saí chapado do teatro”, recorda Furtado). No entanto, o drama de Manguari (Marco Ricca), comunista em crise de meia-idade, lhe soava pouco atual.
— Há dez anos, com a esquerda no poder e sendo aprovada, ressuscitar essa história parecia anacrônico — diz o diretor. — Mas aos poucos “Rasga coração” foi se tornando mais e mais atual. Os protestos de 2013 mostraram que as pautas tinham mudado muito, havia novas demandas dos jovens. Esse é o conflito da peça, voltou a fazer todo o sentido uma adaptação.
Transversal do tempo
Houve também uma atualização. No texto de Vianninha, o presente eram os anos 1970, e a narrativa recuava até os anos 1930; no roteiro de Furtado, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, a história se passa em 2013, e os flashbacks são de 1979. Luca, o filho hippie de Manguari e Nena que era impedido de entrar no colégio por causa dos cabelos longos, agora, vivido por Chay Suede, é suspenso por usar roupas femininas, para desgosto da mãe (Drica Moraes) - quando jovem, a personagem é interpretada por Duda Meneghetti, e Manguari por João Pedro Zappa. Já o anárquico Lorde Bundinha, um dândi dançarino de valsas no original, vira um músico porra-loca vivido com gosto por George Sauma.
Permanece o cenário principal, um apartamento de classe média em Copacabana (na verdade, um estúdio em Porto Alegre, como boa parte das locações), e o embate de gerações e suas visões de mundo.
Enquanto o funcionário público Manguari busca, ainda, mudar as coisas através de diálogo e alianças, Luca e sua namorada Mil (Luisa Arraes) defendem a ação direta e criticam o comodismo dos mais velhos.
— Este é o primeiro longa em que não uso um argumento original meu e, talvez por isso, é a história que mais tem a ver comigo. Tem um protagonista da minha idade, de esquerda, surpreso com uma geração que não acredita mais em política partidária, mais interessada em questões de gênero — diz Furtado, 59 anos, que visitou colégios ocupados por estudantes em 2016, experiência que inspirou trechos do filme. — Eles arrumaram a escola inteira! Era impressionantemente adultos, uma juventude muito consequente. Ao menos em comparação a mim, que nessa idade só queria saber qual era o próximo disco do Pink Floyd e mais nada.
‘Todo mundo tem razão’
A trilha sonora, aliás, é fundamental em “Rasga coração”. Auxiliado por Sauma e Suede, também músicos, Furtado pinçou canções representativas de uma certa “MPB maldita” setentista. Isso inclui, além da antiga faixa que dá nome ao filme/peça, “Qualquer bobagem” na versão de Tom Zé, “Gotham City” por Os Brazões, “Movimento dos barcos”, de Jards Macalé, e uma música inédita de Sergio Sampaio que só tinha sido registrada pelo próprio num vídeo caseiro. A pedido do diretor, João, filho de Sergio, registrou a música, batizando-a de “Corda ré” e permitindo sua utilização no filme.
Furtado torce para que, depois do cinema, o filme tenha uma vida longa em outras plataformas — e gere um necessário debate.
— Espero que os conflitos de “Rasgue coração” ajudem a pensar no que o Brasil virou. Como a gente chegou a esse ponto de ruptura, nesse país dividido? Na família que o Vianninha criou, todo mundo tem razão. Eles não se entendem, mas tentam.