RIO - Multifacetado, mutante e inquieto até no luto, Nick Cave, que se apresenta neste domingo em São Paulo (depois de 25 anos sem fazer shows no Brasil), é herdeiro de duas correntes fundamentais do rock.
Primeiro, sua persona artística se deriva de uma linhagem que poderíamos simbolizar pela "Tower of song" ("Torre da canção"), aquela cantada pelo canadense Leonard Cohen com Hank Williams no topo, e que agrupa uma série de cantores-compositores com enorme densidade nas letras e romantismo enriquecido por lirismo e imagética. Cave é tributário de Cohen e Johnny Cash no uso da religião como acessório para falar de amor, e é muito disso que se ouvirá no show do domingo, sobretudo na perfurante balada "Into my arms", gravada com piano, baixo e voz no irretocável "The boatman's call", de 1997.
Nick Cave & The Bad Seeds - Into My Arms
Mas há também o frontman combativo, maior que a vida, que se dirige ao público como um pregador insano no Largo da Carioca — e sim, acabo de me lembrar do Cabo Daciolo. Esse homem verborrágico será perfeitamente reconhecível em "The mercy seat", canção de "Tender prey" de enorme poder cinematográfico, que conta os últimos pensamentos de um condenado à morte. É tudo cantado com a força punk que talvez encontre suas melhores equivalências em Johnny Rotten, dos Sex Pistols.
— Nós vamos estourar a cabeça da galera — prometeu ao fim da coletiva da última quinta-feira.
Nick Cave & The Bad Seeds - The Mercy Seat
Entre esses dois hemisférios, o cênico e o lírico, Nick Cave transitará pelas diferenças estéticas que se espalham pela enorme paleta construída pelos Bad Seeds, uma banda transnacional que já dispôs de gênios como o guitarrista alemão Blixa Bargeld (Einstürzende Neubauten), o arranjador australiano Mick Harvey (hoje parceiro em álbuns da ex de Cave, PJ Harvey) e o recém falecido tecladista Conway Savage.
Até 1989, os Bad Seeds eram uma banda extremamente ruidosa e macabra, com alguns toques decadentistas, o que lhes valeu o rótulo de "gótica" desde a estreia com "From her to eternity", de 1984, cuja faixa-título Cave deve recuperar em SP, até o "Tender prey", de 1988. Os anos 1990 iniciados no Brasil, porém, abriram as portas para um som mais camerístico.
Cave deixa os pesadelos musicais e começa a se aprofundar no artesanato da canção de amor, e daí surgiram pérolas mais acessíveis ao grande público, como a esperançosa "The ship song", do álbum "The Good son", de 1990. O australiano parece encarnar a ideia do poeta do rock, com canções de estrofes bem definidas, delicadeza nas melodias e pungência nada imagens.
Ainda há espaço para catarse pura, como na "Loverman" de "Let love in" (1994), que até o Metallica regravaria, e no álbum "Murder ballads", calcado na tradição americana da canção de assassinato e abrilhantado por duas participações especiais: a compatriota pop Kylie Minogue e a diva PJ Harvey, com quem teve breve, mas marcante relacionamento. Desse álbum, Cave cantará a explosiva e desbocada "Stagger Lee".
Nick Cave & The Bad Seeds - Stagger Lee
O piano tomaria a frente do som dos Bad Seeds com o fim da relação, contada em algumas das faixas de "The boatman's call". Na mesma época, ele se sentirá à vontade para dar uma conferência em Londres sobre a arte da canção de amor, em que cita García Lorca, W.H. Auden e a palavra "saudade".
Essa faceta propulsionou Cave para uma audiência até então inesperada. Canções como "People ain't no good" em "Shrek" e "O Children" em um episódio de "Harry Potter" sinalizavam que o cantor maldito estava plenamente assimilado como um gigante do gênero. A expansão de Cave pela arte ocidental avançava no cinema, com roteiros ("A proposta"), aparições ("O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford"), trilhas ("Os infratores") e até um natimorto projeto trazido por Ridley Scott e Russell Crowe: a continuação de "Gladiador". Ambos detestaram o excesso de violência que Cave propôs ao herói ressuscitado.
A última fronteira
Desde 2001 o conjunto se ancora sobretudo em Warren Ellis, guitarrista, violinista e arranjador, mestre de texturas e maior barba do rock depois dos ZZ Top. Sua capacidade de criar climas se instalou em "No more shall we part", atravessou o gospel de "Abbattoir blues/The lyre of Orpheus" e acabou tão onipresente que deixou pouco espaço para Blixa e Harvey, que deixaram a banda.
É de Ellis que emanam os sintetizadores caudalosos que embalam o gosto de trilha sonora tanto em "Push the sky away" (2013) quanto no mais recente "Skeleton tree" (2016), através do qual Nick Cave purgou seu luto pela morte do filho adolescente, Arthur, em acidente de 2015. A cortante "Distant sky" e a dolorosa "Jesus Alone", ambas de "Skeleton", podem ser lembradas no show deste domingo.
Nesses dois álbuns, essa música mais climática, sem formas definidas de canção, se espalha por versos menos narrativos e mais surrealistas, como o "feto numa coleira" de "Jubilee street", e os cientistas de "Higgs boson blues". São frutos colhidos em sua última fronteira.
Conquistar esse tipo de liberdade nas imagens foi um caminho longo, em que algumas fórmulas marcantes (e extremamente eficientes) foram deixadas para trás quando pareciam se tornar muletas. O uso de motivos religiosos como o passeio de um abandonado pela igreja de "Brompton oratory" (1997) se repetiu em 2001 com "Darker with the day", em 2001. Ambas são lindas e alcançam dimensões próprias, mas, na primeira década do século atual, Nick Cave parecia esgotar-se.
Coube a Ellis sugerir debochada, mas contundentemente, que o disco seguinte a "Nocturama" não mencionasse Deus. Positivamente desafiado, Nick Cave recorreu ao humor, mas precisava de um esconderijo para fortalecer a nova veia. Esse esconderijo veio num bigode e se tornou em 2007 o Grinderman, um projeto noise com Ellis e outros dois Bad Seeds (o baixista Martyn P. Casey e o baterista Jim Sclavunos). A temática era basicamente a busca por sexo depois dos 50 anos, dominada por um senso animalesco: o primeiro álbum traz um macaco masturbador, o segundo, um elegante lobo numa sala setentista entre o clean e o kitsch.
— Não faz sentido voltar com o Grinderman agora. Talvez quando estivermos bem velhos, com quase 80 anos, valha a pena voltar a compor naquela verve — disse Cave.
O Grinderman desenvolveu, em dois discos, músicas hilariantes sobre a fadiga sexual do homem branco de 50 e poucos anos com uma coragem que escarnecia do politicamente correto, mas também dessa figura ridícula que chama mulheres de "abelhinha" enquanto a convida a viajar para Marte. O grito primal de "Get it on", que abre o primeiro, e a fúria de "Bellringer blues", nos estertores do 2, comprimem experimentações diretas que levaram ao palco shows eletrizantes. Vi dois concertos do Grinderman em Londres e a sensação no ar era a de que nunca estivemos tão perto de sacrificar uma virgem num show de rock.
Grinderman - Get it On
Dali em diante, Cave levou o humor e o surrealismo mais a fundo, chegando a escrever seu segundo romance, "A morte de Bunny Munro", uma odisseia de pai e filho tão engraçada quanto desoladora, enquanto o som se transformava. "Dig, Lazarus, dig" (2008) é hoje considerado pelo próprio cantor um disco menor ("Parece que estávamos produzindo algo que olhava para trás", disse na coletiva em São Paulo).
A calibragem rumo ao futuro de Cave viria em "Push the sky away", que teria sua gênese contada no filme "20.000 dias na Terra", espécie de depoimento ficcional de Cave. Trata-se de uma incrível jornada pelos passos de um artista que parece ter sempre muito a dizer e poucas desculpas a pedir:
— Nunca me arrependi de nenhuma canção que escrevi. Talvez pudesse ter editado algumas delas, porque, você sabe... algumas são bem longas.
20,000 Days on Earth [ending scene with English subs]
Popload Gig com Nick Cave & The Bad Seeds
Quando: Domingo, às 20h.
Onde: Espaço das Américas — R. Tagipuru, 795, Barra Funda, São Paulo.
Ingressos: Entre R$ 100 e R$ 360.
Classificação: 18 anos.