RIO - Quando, faz mais de uma década, ainda era artista de multinacional, Ed Motta negociou com a gravadora um pacto: não queria aumento na grana nem carro zero. Só exigia o direito de, para cada disco pop, fazer um outro, em seguida, de formato livre: qualquer coisa que saísse de seu laboratório com teclados vintage manipulados por recursos de alta qualidade sonora e composicional.
Graças a esta decisão, o público mais refinado vem sendo brindado com discos da safra de “Dwitza” (pedra inaugural do Ed introspectivo), o radicalmente jazzístico “Aystelum” e o acidental “Chapter 9”, fita demo para orientar arranjos que ficou tão deliciosamente caseira que foi direto para a prensa.
Mas o pulo de gato de Ed foi inocular os discos “fáceis” com esta mesma finura, o que rendeu aos fãs do velho popstar de “Manuel” obras-primas como “As segundas intenções do manual prático”: CD feito para pistas mas com tamanha mágica orquestral, letrística e melódica que agradou igualmente aos estetas melômanos, que se puseram a bailar. É exatamente esse o caso do novo “AOR”.
Se os discos mais ousados representam a vertente “velho mundo” (para fazer um paralelo com os vinhos que ele tanto curte), “AOR”, embora lotado de referências dos anos 1970/80, é mais um filho da safra “novo mundo”: como os vinhos não europeus de hoje, é palatável, frutado, fashion, mas nem por isso menos digno de degustação.
Nas nove faixas, Ed impõe ritmo dançante com refrães irresistíveis mas, maquiavelicamente, enche a tessitura de detalhes tão pequenos quanto magistrais. É o caso do piano Wurlitzer de Glautin Camelo dando o fecho em “Episódio”; a guitarra de abertura de David T. Walker em “Ondas sonoras” (letra de Adriana Calcanhotto); a endiabrada linha de baixo de Robinho Tavares em “Marta”(imagética canção de avião com letra da quadrinista Edna Lopes, sua mulher); a batera aberta de Sergio Melo em “S.O.S amor” (letra de Rita Lee) ou o solo de Korg à anos 1970 de Rannieri Oliveira.
Os arranjos cuidadosos de Ed são sustentados no brilho dos naipes orquestrados pelo trompetista Jessé Sadoc. E, quase como uma provocação, a faixa-título “AOR”, de apenas 22 segundos, tem fortes notas ácidas e tanino áspero, como a anunciar que o próximo disco da carta será um “velho mundo” dos bons.