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Logo+ apresenta:‘Santa Maria com a boca no monte’, sobre texto inédito de Carlos Nejar

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Rio - Para o marco de uma semana da tragédia em Santa Maria, a Logo+ procurou o imortal gaúcho Carlos Nejar, poeta, pai de Fabrício Carpinejar (que escreveu o poema-símbolo da tragédia, publicado no dia seguinte no Globo), para também escrever sobre o que ocorreu na terra natal. Em menos de 24 horas Nejar compôs "Santa Maria com a boca no monte" (distrito da cidade, Boca do Monte é quase um segundo nome para a localidade). O cineasta e produtor Gustavo Gelmini foi convidado para ir à casa do acadêmico no Rio e filmá-lo lendo o texto e captando o ambiente do velho homem de letras do Sul e, também, a sua récita plena de emoção, aliada ao talento de declamador.

Ao abrigo das repercussões, o filme é uma espécie de glosa paterna, mais reflexiva, intimista, observacional, ao mote poético do filho. Gustavo, que dirigiu o curta "Aldeia Maracanã", com produção da Anistia Internacional e produziu os documentários "Mataram a Irmã de Dorothy" e "Da Maré", optou por uma filmagem em dois planos e uma só sequência, sem cortes, sem inserção de imagens externas, para não haver perda na cadência deste momento único de criação.

Abaixo, o texto do poema

________________________________________________

SANTA MARIA COM

A BOCA NO MONTE – Carlos Nejar

A morte tem rostos, rostos,

os rostos de meu povo.

E qual o mais perfeito,

mais sofrido, ou de enegrecidos

olhos, ou de tamanha terra

que não cabe no movimento

da noite . Ou é tamanha noite

que a terra não suporta .

E não cabem na relva

que carregamos com os mortos,

junto ao peito. Porque a dor

nos desampara e não tem pátria,

ou vincos de fronteira. A dor

da mãe e do pai diante do desastre:

dor que não tem montanhas.

E o amor envelhece a morte,

o amor pesa na sobrancelha

das estrelas. Meu povo:

doemos juntos , doemos

de morrer na profundeza

de não haver mais fala.

Doemos com a fumaça

crescida, com a fumegante

sombra, com a boate engolida

de sangue, chama e fúria.

E a cambaleante, dura

gaiola da madrugada,

seca de luz , sem porta.

E a pouca saída na pedra .

E a porta do banheiro

sem saída.Os celulares

tocando, tocando a morte.

E sem saída, os corpos

amontoados como pedras,

cegas pedras. Inermes ,

mudas pedras. Queimadas

peles, pedras. E não há

futuro nas cicatrizes

da fumaça, ou das ruínas.

Nem qualquer nome

nesta dor que o pampa grita

em Santa Maria com

a boca no monte,

Santa Maria com

a pedra na boca,

Santa Maria da Nuvem

que entra no tempo,

por dentro.Meu povo:

doemos juntos neste

torvo, pétreo, branco,

definitivo fogo.


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