RIO - Em casa, Paulinho da Viola guarda em estantes uma boa quantidade de LPs, muitos dos quais arrematados em sebos ou de comerciantes de discos usados. Alguns, ele admite com orgulho, comprou só pelas capas mui singulares — belezuras com lugar garantido em qualquer antologia do tipo “Worst album covers of all time”, com artistas em trajes escalafobéticos ou em poses inacreditáveis e cantoras com o buço por raspar. Outros, porém, são relíquias do samba, que ele se delicia em pôr para tocar na presença dos amigos que vão visitá-lo. E, na tarde de terça-feira, lá estão Zeca Pagodinho (que passara só para dar um alô) e Nelson Sargento, com quem Paulinho se encontrará novamente domingo, no desfile do Bloco Timoneiros da Viola, que, em seu segundo ano, relembra o espetáculo “Rosa de Ouro”, no qual os dois se conheceram, há quase 50 anos.
— Nelson, e o Zagaia? E o Preto Rico? — pergunta Paulinho, em tom saudoso, enquanto saca da capa meio surrada e ajeita na vitrola o LP “Escolas de samba”, no qual Jamelão interpreta sambas de compositores da Mangueira (como os citados) e do Império Serrano.
— Eu tinha esse disco aí! — interfere Zeca ao ver outra relíquia, “Olha o partido aí!”, que se anuncia como “gravado ao vivo nos 40 anos de samba de Mangueira”, com os partideiros Xangô, Padeirinho, Aniceto, Zagaia e Jorginho.
E assim o papo, que começara nas incríveis aventuras de Paulinho na infância em Botafogo (“Você foi preso por jogar bola... e conseguiu cair de um bonde parado! Você tem que ser estudado, Paulinho!”, recomenda um atônito Zeca) e em seguida enveredou pelas raridades fonográficas do samba, chega, forçosamente, ao “Rosa de Ouro”, espetáculo de Hermínio Bello de Carvalho que, em 1965, juntou as cantoras Aracy Cortes e Clementina de Jesus a um grupo formado por Nelson, Paulinho (então com 22 anos), Elton Medeiros, Anescar do Salgueiro e Jair do Cavaquinho para cantar o fino do samba.
Compositor da Mangueira desde os anos 1940, parceiro de Cartola, Nelson é quem abre o pote das memórias:
— O Elton e o Hermínio foram lá no morro e disseram que queriam um sambista que tocasse violão. Eu era pintor de parede, e o recado que me chegou era para que eu fosse lá no Teatro Jovem, em Botafogo. Eu pensei que era para pintar o teatro! Eles pediram de novo, mas eu não fui. Na terceira vez, eles disseram: “Vai lá amanhã ou não vai mais.” Quando cheguei, estavam Jair, Anescar e o Elton, e aí soube que era para eu fazer parte do grupo.
E, se não caiu da cadeira com aquele convite, Nelson cairia logo depois, quando Paulinho, atrasado, chegou ao teatro. O sambista da Mangueira olhou para o garoto, pensou em dizer alguma coisa, mas não disse. Nos primeiros versos de “14 anos” (“Tinha eu 14 anos de idade quando meu pai me chamou / perguntou se eu queria estudar Filosofia, Medicina ou Engenharia / tinha eu que ser doutor”), perguntou: o samba é desse garoto? E alguém respondeu: “É, e ele tem melhores do que esse!”
— Se eu pensasse em voz alta, estava perdido! Mas eu sempre pensei em voz baixa — diverte-se o mangueirense.
Naquele primeiro encontro do time que faria o “Rosa de Ouro”, Paulinho da Viola (que já conhecia os sambas de Nelson Sargento mas não sabia que eram dele) ainda se sentia, em suas palavras, “muito verde”. Ele tinha se apresentado brevemente no Zicartola (onde recebera, das mãos do próprio Cartola, o seu primeiro cachê) e acabara de deixar o emprego num banco.
— Mas eu ainda não tinha muita certeza se era música que eu ia fazer. Eu me divertia muito com aquilo, era um prazer enorme estar tocando com aquelas pessoas, mas eu não tinha aquela convicção. Aquilo ainda era uma experiência que eu iria viver — lembra Paulinho. — Nosso grupo só acompanhava. Sucesso mesmo eram a Clementina e a Aracy.
Entre o público que se espremeu no Teatro Jovem para assistir a “Rosa de Ouro”, Paulinho conheceu o compositor José Carlos Capinan, recém-chegado da Bahia. Com ele, em 1966, compôs “Canção para Maria”, que, interpretada por Jair Rodrigues, ficou em terceiro lugar no II Festival da Música Popular da TV Record de São Paulo (aquele mesmo cujo primeiro lugar foi dividido por “A Banda”, de Chico Buarque, e “Disparada”, de Geraldo Vandré). Mas a carreira de compositor, ele só viria a levar a sério mesmo quatro anos depois, quando seu samba “Foi um rio que passou em minha vida” estourou nacionalmente.
Devagar na composição
— O Zé Kéti e o Hermínio é que me incentivavam a compor. Eu não me via como compositor, gostava era de ser músico. Até hoje eu não sou assim um compositor assíduo, às vezes eu levo muito tempo sem compor, mas é da minha natureza mesmo — confessa ele, compreensivelmente ainda sem previsão de lançamento de um disco de inéditas (o último foi “Bebadosamba”, de 1996). — Os amigos e parceiros até reclamam quando deixam uma letra ou uma melodia comigo, porque eu levo muito tempo para fazer uma música.
A vida de Nelson também mudou a partir do “Rosa de Ouro”. Com a saída de Zé Kéti para o espetáculo “Opinião”, ele foi chamado para integrar o grupo Voz do Morro, onde já estavam Paulinho, Elton, Anescarzinho e Jair.
— Eu fiquei empolgado comigo mesmo, a peça era boa. Quando ela acabou, eu voltei pra minha profissão de pintor de paredes. Mas já tinha um conhecimento, comecei a cantar em shows — conta o lendário sambista, que no dia 9 tomará posse como presidente de honra da Mangueira.
O bloco Timoneiros da Viola se concentra amanhã, a partir do meio-dia, na Praça Paulo da Portela, em Oswaldo Cruz, e começa as atividades às 13h, com a participação de Paulinho e Nelson, além do mito portelense Monarco, do cantor Rychah (intérprete oficial do bloco) e do grupo Exporta Samba.
— O que a gente está pensando não é em trazer o espetáculo para dentro do desfile, mas relembrar algumas canções que marcaram o show dentro do contexto de um bloco de rua — diz o presidente do Timoneiros, Vagner Fernandes, ressaltando que não faltarão músicas como “Senhora Rainha” (tema de Heitor Villa-Lobos com letra de Hermínio Bello de Carvalho), “Escurinho” (Geraldo Pereira) e “Os quatro crioulos” (Elton Medeiros e Joacyr Santana).
Paulinho da Viola se diz lisonjeado com mais essa homenagem do Timoneiros (“Muitas pessoas pensam que o bloco é meu, mas eu sou só convidado”, observa). Mas não espere conseguir arrancar dele algum depoimento entusiasmado sobre o atual carnaval de rua do Rio de Janeiro.
Batalha de confete
— A cidade é a mesma, mas há muito mais pessoas. Tem até bloco que não sai. E bloco que, quando sai, é um problema — analisa ele, com a certeza de que tudo o que tinha que brincar no carnaval, ele o fez na infância, nos blocos de Botafogo. — Nessa fase pré-carnavalesca, era o momento em que as músicas eram lançadas. Tinha pistom, trombone. O bloco dava uma volta no bairro e, quando dava 22h, ele acabava. Tinha batalha de confete, banho de mar à fantasia. Eu brincava muito em Botafogo. Na Rua Arnaldo Quintela, os comerciantes fechavam as lojas, e até escola de samba desfilava ali!