RIO - O adolescente Mickey está com a amiga no quarto, olhando o horizonte pela janela, conversando e fumando um baseado. Sozinhos. Era o que ela pensava, na verdade. A certa altura, do monte de revistas, embalagens de comida, cachimbos indígenas para haxixe, palhetas, roupas limpas e sujas, discos e tralhas mil do canto do quarto, se ergue um outro adolescente que dormia ali, de braços compridos, óculos escuros e sem calças — um garoto que poucos anos depois se tornaria conhecido como Joey Ramone. A cena abre o livro “Eu dormi com Joey Ramone — Memórias de uma família punk rock” (Dublinense), que Mickey Leigh, irmão de Joey, escreveu em parceria com o jornalista de rock Legs McNeil. Ali aparece o olhar de intimidade sobre o rockstar de vida atribulada — atravessada, do nascimento à morte em 2001, por doenças e distúrbios psicológicos, além de uma antológica história de traição — presente em todo o livro. Intimidade e carinho — até na escolha de descrever o personagem-título sem poupá-lo da possibilidade de parecer esquisito, como na abertura do livro.
— Você o chama de esquisito. Eu o chamo de meu irmão — diz, rebatendo a pergunta sobre a escolha de ter aberto o livro com a imagem de um sujeito surgindo sob uma pilha de bagunça.
Leigh tinha essa história — e esse personagem — na mão. Uma história de crescimento e superação de alguém que sofreu problemas de saúde desde a barriga da mãe. A massa de um feto não desenvolvido ficou presa na sua coluna durante sua formação, formando um tipo de tumor chamado teratoma sacrococcígeo. Mais tarde, ele desenvolveu Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) — um processo acompanhado de perto pelo autor e mostrado no livro.
— Acredito que essa é uma história extremamente importante para ser contada, porque poderia afetar e inspirar muitas pessoas em muitos níveis, mesmo se o leitor nunca tivesse ouvido falar dos Ramones — explica Leigh. — Para mostrar como pessoas que lutam contra adversidades físicas e mentais, podem superar expectativas até níveis inimagináveis se eles forem capazes de buscar fundo o suficente dentro de si. Para mostrar o imenso impacto que o amor e o apoio da família podem ter sobre uma vida.
Mais que a biografia do vocalista dos Ramones (Mickey nega veementemente que o livro seja isso), porém, “Eu dormi com Joey Ramone” é uma história de relação de irmãos, de extrema cumplicidade — o que inclui uma proximidade unha-e-carne na infância e juventude e brigas sérias na idade adulta, com um episódio no qual Joey enconstou uma faca na barriga de Mickey.
— Nunca pretendi fazer uma biografia de Joey Ramone. O “eu” no título indica que a história é da minha vida crescendo junto com meu irmão — diz Leigh, sem deixar de chamar a atenção para a importância do livro para a compreensão da figura de Joey. — Se você não está informado da profundidade de onde algo vem, não será capaz de apreciar as alturas que ele alcança.
A trajetória dos Ramones de perto
Apesar do forte conteúdo de intimidade familiar e superação, os fãs do Ramones interessados nos bastidores da história da banda não se decepcionarão. A pré-história dos Ramones teve intensa participação do autor. Tanto nas primeiras bandas que teve ao lado do irmão quanto no testemunho do nascimento da primeira música dos Ramones (“I don’t care”), os primeiros shows, a transformação de uma banda que mal conseguia tocar uma música sem errar numa máquina atômica de “one, two, three, four” e petardos ininterruptos (com a participação de Leigh como roadie). Foi Leigh também o primeiro a conhecer Johnny Ramone — parceiro e “antagonista” de Joey na banda, para quem o vocalista perdeu a namorada Linda, num episódio que teria sido “homenageado” pelo vocalista em “The KKK took my baby away”. E os conflitos que antecederam todos os momentos da trajetória, do filme “Rock & roll highschool” até a entrada da banda no Rock’n’Roll Hall of Fame.
Leia abaixo trecho do livro:
Mas a escola era o que havia de pior. Os garotos torturavam Jeff de verdade, tanto fisicamente como verbalmente. Embora fosse o auge da era hippie, o pessoal metido a machão ainda tentava impressionar uns aos outros, mexendo com o esquisitão. Certas coisas jamais mudam.
Ter uma família com um grau de esquisitice compatível acabou salvando Jeff de perder completamente o rumo. O lar era um porto seguro. Rock & roll era o paraíso, e morávamos em uma casa rock & roll. Depois da sua formatura no colégio, com a exceção de algumas poucas viagens, Jeff passou a maior parte do tempo em casa, ouvindo discos, fumando cigarros, enrolando o cabelo, fazendo bagunças horríveis e participando de rotineiras gritarias com a nossa mãe.
Uma das grandes excursões de Jeff foi para São Francisco. Ele queria atravessar o país pedindo carona, um método popular de viagem para aqueles que buscavam a “experiência de vida real”. Tentei fazê-lo mudar de ideia. Tínhamos acabado de assistir a Sem destino. (...) Voltou para a casa e, como lembrança, trouxe uma desagradável infestação de chatos.