NOVA YORK — John Michael Stipe completou 53 anos no último dia 4, sendo 31 deles dedicados a composições, álbuns e turnês do R.E.M., catapultado no espaço de três décadas ao status de uma das maiores bandas do planeta. A dissolução do grupo em 21 de setembro de 2011 ofereceu ao celebrado letrista, vocalista e bandleader a almejada liberdade para mergulhar em outros universos artísticos nos quais já se expressava paralelamente a sua vida de palco e de estúdio, como o cinema, a fotografia e a escultura. No dia 12 do mês passado, ele surpreendeu ao reaparecer em cena para interpretar um de seus maiores hits, “Losing my religion”, no concerto promovido no Madison Square Garden, em Nova York, em benefício das vítimas do furacão Sandy nos Estados Unidos. Seus incondicionais fãs se exaltaram diante do que poderia ser o sinal de um eventual retorno ao mundo da música, mas ele próprio fez questão de desmentir essa esperança — pelo menos por enquanto. À parte sua relação umbilical com o R.E.M., Michael Stipe se impôs como um nome e um artista independente, e também um ativista político e um cidadão preocupado com os destinos do homem e das sociedades. Nesta conversa exclusiva, ele recebeu a Revista O GLOBO em seu apartamento nova-iorquino no Soho. A residência, um loft duplex com ampla vista para o rio Houston, foi depois colocada à venda, na busca de um novo endereço com espaço adequado para acolher um estúdio para o seu trabalho em escultura. Acomodado numa pequenina sala do imenso apartamento, Michael Stipe falou de sua indissociabilidade com a criação e sua concepção de arte; de sua condição de popstar; de seu otimismo e sua obscuridade; de sua relação com a sexualidade, e também de suas impressões sobre o Brasil. Com o fim do R.E.M., o autor de “It's the end of the world as we know it (And I feel fine)”, diz ter percebido que era feliz “criando”, por meio da música ou de outras formas artísticas:
— Acordo pela manhã com ideias, problemas, e às vezes com soluções para esses problemas. É difícil representar uma ideia que sai de mim para o mundo por meio de uma fotografia, escultura, canção ou performance. Mas tenho necessidade de colocar algo para fora de mim, para o mundo, ser um criador de coisas.
Fotografia e melodia são mais fáceis para você do que letras e ideias. Escrever é doloroso?
É doloroso. Não é algo que surge naturalmente para mim. Uma coisa é falar para o seu melhor amigo, outra coisa é saber que isso vai ser exposto ao mundo, que as pessoas vão se sentir entediadas ou inspiradas. Ou vão achar que eu sou um idiota. Posso imaginar o que quero dizer, mas não posso realmente dizer da forma que quero, não tenho o vocabulário. Há algum tempo, alguém disse para mim que artistas encontram meios pelos quais expressar o que não conseguem dizer. Isso me parece o mais honesto e puro, porque é uma batalha. É recompensador quando acontece, e você sabe se é bom ou ótimo. E você não quer ser um estúpido ou um cara chato, como disse Bono. O pior para um popstar é ser tedioso. Há prazer quando você sabe que fez algo que comunica, que tem uma pureza. E essa pureza surge em várias formas. Pode ser Britney Spears e Lady Gaga. Pode ser a coisa mais pop, mais sem sentido. Não é particularmente high art. O trabalho feito na arte é um dos que levo muito a sério. É pessoalmente especial para mim, porque eu sou fã de artistas. Mas é apenas um trabalho, que ora não paga muito bem, ora bem demais.
Você disse ter sentimentos apocalípticos desde criança, mas também se define como “loucamente otimista”. Como é isso?
Sou assim. Há um lado obscuro, que provavelmente é bastante óbvio. Mas tenho essas duas coisas, e é parte da natureza contraditória de John Michael Stipe. E daí? É impressionante quando é algo que sai de mim e que as pessoas podem entender, na forma de uma canção ou de alguma outra coisa, que fala sobre o que é ser humano. Se ocorre da forma como eu queria, empurra levemente este momento para a frente. Sempre levemente. Poderia oferecer alguma redenção para as coisas más, alguma coragem para o que está por vir, alguma alternativa, cenários que poderiam transpirar do presente no futuro. Se de fato isso acontecer, então como artista posso ter atingido o nível mais alto ao meu alcance. Esse é o grande apelo, reinterpretar o mundo e fazê-lo avançar progressivamente, ou talvez de forma gigantesca, monumental.
Já se disse que você criou uma alma de mistério em torno de si mesmo. Você se considera misterioso?
Há tempos com a banda — estou falando de 20, 30 anos atrás —, sentia que o mistério era um componente importante para manter as pessoas interessadas no que você estava fazendo, criar um interesse no que você é. Fiz isso quando jovem, provocando um sentido de distância e mistério. Eu olho hoje para aquele jovem e vejo alguém tão inseguro e incrivelmente tímido... Era a natureza contraditória de querer ser muito famoso, mas não querendo abordar isso, querendo controlar o que era revelado sobre mim. Eu me dei conta rapidamente de que isso estava ficando cansativo para mim, e também que estava me tornando um chato. Eu me sentia estúpido. Comecei a tentar mudar e sair da minha timidez que era imensa — e ainda é, não sou uma pessoa extrovertida. Hoje me vejo nessa posição invejável de ser um artista que é respeitado pela maioria das pessoas — ou do qual pelo menos elas têm uma opinião a respeito, boa ou má. E eu revelei muito mais de mim mesmo do que eu jamais poderia imaginar. E agora de alguma forma eu tenho que defender isso. Acho eu.
Você já mencionou algumas vezes que sua sexualidade foi importante para a escolha de trabalhar com criação, para se sentir como um outsider. Como se sente hoje?
Eu ainda sou um outsider, sinto um grande prazer de estar nessa posição, não acho que gostaria de ser um insider. Mas isso vai bem além da sexualidade, claro. Achava que não precisava responder a pessoas que estavam sendo invasivas com perguntas muito pessoais. Eu entendo agora que os anos 1980 foram muito difíceis para a comunidade gay, queer e os bissexuais, como ainda é hoje. Foi um tempo muito difícil para todo mundo por causa da Aids e do governo com sua inabilidade e recusa em aceitar essa pandemia que estava começando a crescer. Entendo as frustrações das pessoas comigo, olho para trás e vejo que elas ficaram chateadas. Mas se fosse completamente honesto sobre como me rotular, elas não iriam gostar do que eu tinha para dizer. Há momentos em que me arrependo por não ter me manifestado mais cedo sobre minha sexualidade, pois isso impactaria pessoas de forma positiva. Mas também sinto que nunca fui desonesto comigo mesmo, com as pessoas ao meu redor ou com a imprensa, dizendo algo que eu não era. Eu simplesmente não falava disso. Grande parte disso foi porque eu nunca me senti realmente apaixonado por alguém, e sempre buscava uma oportunidade de pular de uma relação para outra e para outra e para outra. E isso era uma das partes divertidas de ser um popstar. E então me apaixonei pelo Thomas (Dozol, seu companheiro), e nessa situação tem sido muito interessante para mim olhar o que o século XXI oferece. Sempre fui desprezado e criticado pela minha opinião de que a sexualidade é algo muito fluido e de que há diferentes gradações, mas os jovens hoje parecem ser muito mais abertos, ou até com algo “pós-gênero”. É o que eu vejo por todo lugar em Nova York. E então de repente algo pelo qual eu era criticado e castigado, agora parece estar vindo à tona, quando as pessoas reconhecem que, sim, há extremos, mas também há gradações, e as pessoas precisam ser mais tolerantes. O desejo é algo muito estranho, e é um grande tema. É incrível quando você trabalha nesse campo específico tentando descrever por meio de uma pintura ou escrevendo uma música o que é o desejo ou como ele nos afeta. Precisamos entender que chegou o momento de falar de sexualidade numa maneira que não seja binária, preto e branco, encerrada no espectro de reações a ideais vitorianos. Não deve nem mesmo ser uma reação à norma, nem temos de ser o oposto, podemos ser a nossa própria realidade. E aí se torna algo político, pessoal, e é quando se torna também incrivelmente inflamável.
Você vê alguma perspectiva de mudança de comportamento?
Eu me sinto confiante. A tecnologia é algo fascinante. Vi o vídeo que se tornou uma febre na internet, feito por um garoto de 14 anos, que basicamente dizia: “Tenho medo de voltar para a escola, porque tenho sofrido bullying por ser gay, e não sei o que fazer, estou realmente com muito medo.” Ele estava acuado, chorava, era algo realmente difícil de assistir, muito doloroso. E olhando, era apenas uma criança. Eu me lembro de, quando era adolescente, sentir o mesmo que ele. Algo assim, há 15 anos, teria sido visto por umas dez pessoas. Hoje, roda o mundo em menos de 24 horas e é visto por centenas de milhões de pessoas, que por sua vez fazem seus próprios vídeos dizendo: “Eu sofri a mesma experiência, precisamos nos manter unidos e mudar as coisas para que isso não ocorra mais; necessitamos de leis de proteção contra o bullying.” É algo muito poderoso. Sinto que isso pode nos levar a uma era muito mais progressista em relação ao que somos capazes de ser. Somos capazes de ser monstros, como o século XX mostrou. Deixemos agir o nosso lado iluminado em vez do lado sombrio.
Você já esteve no Brasil. Qual a sua percepção do país e dos brasileiros?
Sou apaixonado por etnias. O Brasil é uma impressionante mistura, miscigenação, pessoas originadas da África, de Portugal, de diferentes lugares, e todos juntos criando estes diferentes matizes e tipos de pessoas. Para mim, o Brasil é fascinante nesta perspectiva. E sou obcecado pelo modernismo, por ideias utopistas, pelo brutalismo, pelo caos urbano, e me ver sozinho em São Paulo é uma experiência que só pode ser comparada a Istambul e Tóquio. Nenhum dos outros lugares em que estive me deu essa impressão tão peculiar de: “Minha nossa, essa é a minha ideia de cidade.” É incrível.