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Lucian Freud revirado em livro de memórias

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RIO - No fim da década de 1980, Lucian Freud contratou gângsteres da região do East End, em Londres, para ameaçar com “consequências desagradáveis” um potencial biógrafo. Mais tarde, já nos anos 1990, o artista pagou uma “quantia substancial” para que outro biógrafo não escrevesse sobre ele, embora tenha contribuído voluntariamente para o livro que o escritor preparava.

Dois anos após sua morte, em 2011, o jornalista Geordie Greig conta não só a história dos bandidos, mas uma sequência de detalhes da vida íntima do artista que, por décadas, fugiu da imprensa e de biógrafos e é um dos mais importantes pintores do século XX. “Café com Lucian Freud”, recém-lançado pela editora Record no Brasil, é, como o próprio autor diz, fruto do trabalho de um stalker — Greig perseguiu Freud durante 20 anos até que o pintor atendesse a um pedido de entrevista.

— Escrevi para ele pela primeira vez quando tinha 17 anos, e ele tinha 55. Foram 20 anos até que nos falássemos. E ele tinha 88 quando nos encontramos pela última vez, para uma despedida em seu leito de morte. Foi uma longa e imprevisível jornada, começando com silêncio e desconfiança e até subterfúgios e perseguições. Terminou como uma amizade — diz o autor, em entrevista ao GLOBO.

O livro tem o tom um tanto desesperado da busca de Greig por Freud. O jornalista, hoje editor do “The Mail on Sunday”, conta que a obsessão começou quando viu, aos 17 anos, numa excursão do colégio, a tela “Naked man with a rat” (1977-1978). Decidiu que queria conhecer o autor daquela obra “explícita e espantosa”. Enviou-lhe uma carta. Nunca teve resposta.

“A única carta que Lucian me enviou antes de sermos apresentados dizia o seguinte: ‘A ideia de lhe conceder uma entrevista me causa náuseas’”, escreve o autor, escancarando no livro o desprezo que o artista nutriu por ele durante décadas.

Primeiro, a faca, depois, o chá

Greig conta ainda que, certa feita, chegou à porta da casa de Freud com um exemplar do “Evening Standard”, jornal do qual era editor à época, e foi recebido com... uma faca. “‘Artista lunático esfaqueia editor de jornal’ não é uma boa maneira de ser lembrado”, disse Greig, com um sorriso nervoso. Freud respondeu: “Posso pensar em maneiras piores”. E convidou o jornalista para uma xícara de chá.

Durante 30 anos, os dois se encontraram no restaurante Clarke’s, em Notting Hill, bairro onde o artista vivia. Tomavam cafés e conversavam — ora por 40 minutos, ora por três horas. Muitas vezes, o convite surgia de última hora, com um SMS enviado pelo fiel assistente do pintor, David Dawson: “Clarke’s daqui a 20 minutos”. Nessas ocasiões, Greig passou a gravar as conversas. Quando indagado sobre o fato de Freud saber ou não que ele planejava uma biografia, o autor soa vago:

— Lucian sabia que eu estava gravando as conversas, já que o gravador estava sempre sobre a mesa antes de nós começarmos. Nunca falamos sobre um livro, embora ele soubesse que eu usava as entrevistas para artigos em revistas, que ele aprovava. Nos anos 1990, ele barrou um livro, mas nunca me proibiu de escrever nada que eu quisesse sobre ele.

Como biógrafo, diga-se, não autorizado, Greig comenta a polêmica das biografias no Brasil. Para ele, “quanto mais abertura melhor, quando se trata de vidas de pessoas sendo escritas”.

— É sempre perigoso quando um governo decide o que pode ser escrito, há risco de censura pelo Estado. Corretamente, há leis para proteger pessoas vivas de serem caluniadas, mas, quando alguém morre, é bom para a História que sua vida seja escrita.

E assim ele se permite contar no livro inúmeros detalhes da vida íntima de Freud. Sabe-se, por exemplo, que o pintor que deixou a Alemanha fugindo do nazismo e se fixou na Inglaterra em 1932 pedia ao assistente que lhe comprasse Solpadeine, “analgésico que usava compulsivamente para manter sua energia e aliviar qualquer dor ou desconforto”.

Greig descreve recorrentes brigas de bar — numa, Freud atirou pãezinhos em alguém que o fotografava com flash; em outra, bradou para mulheres que entravam num restaurante: “Odeio perfume. As mulheres deviam ter um único cheiro: de vagina. Na verdade, deviam inventar um perfume chamado Vagina”. “Ele não deu nenhuma entrevista à imprensa de 1940 até sua última década de vida. Sabia-se que ele agredia fisicamente fotógrafos e que insultava quem se aproximava demais. Eram raras as suas fotografias. Lucian costumava contratar gângsteres para manter as pessoas afastadas”, escreve o autor.

Greig afirma ter entrevistado mais de 60 pessoas (“E quase todo o livro foi escrito no BlackBerry!”, diz). Há desde o personagem retratado na tela que um dia o seduziu, “Naked man with a rat”, até garçons de restaurantes e filhos do artista. Freud reconheceu como suas 14 crianças, mas seu biógrafo diz que outras 30 não foram reconhecidas. “Não gosto de bebês”, dizia o artista, segundo seu stalker.

O jornalista não poupa adjetivos ao biografado — vai de “egoísta” e “rude” a “carismático” e “extremamente talentoso”. Trata menos da arte e mais da vida pessoal de seu personagem. O livro, por fim, “oferece a fofoca, mas falha ao capturar o artista”, como escreveu o crítico Tim Adams, em resenha no jornal britânico “The Guardian”. Greig rebate:

— Sou um repórter, e não um crítico de arte. Eu escrevo, sim, sobre sua arte e sobre como progrediu, analiso algumas pinturas, mas não sou um historiador da arte. Isso é um livro de memórias, um retrato do artista pelo homem que foi obcecado por ele.


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