NOVA YORK - Betty Boop começou a vida como um cão de orelhas caídas e terminou como uma dona de casa feliz trajando avental. Mas em seu auge — entre os anos 1931 e 1934 — ela foi uma grande estrela em filmes americanos, apesar de, como a sua música tema diz, ser “feita com pena e tinta”.
Criada pelos animadores nova-iorquinos Irmãos Fleischer — Max, o mais velho dos três, produziu; Lou animou e depois supervisionou a música; e o irmão caçula, Dave, dirigiu —, ela foi, como o historiador de animações Donald Crafton afirma em recente estudo, “Shadow of a mouse” (“Sombra de um camundongo”, da University of California Press), “um dos primeiros personagens animados a ser totalmente humano e a única estrela clássica dos desenhos criada como uma fêmea (nem Minnie nem Margarida eram personagens principais).
O design de Betty foi uma curiosa combinação do infantil (a cabeça gigantesca, a boca pequena e os grandes olhos redondos) e do inequivocamente adulto (sua figura curvilínea, acentuada pelo pequeno vestido preto que enfatizava seu decote ousado e revelava uma anacrônica liga circulando a sua coxa). Ela representa uma aliança perturbadora entre a inocência absoluta e uma sensualidade adulta — uma descrição que também poderia ser aplicada às demais animações dos Fleischers, ao menos até que a renovação do Código de Produção, no verão de 1934, levasse, como outra canção da personagem expressa, seu “boop-oop-a-doop away”.
Os Fleischers lançaram a maior parte de suas animações pela Paramount Pictures, embora os direitos dos filmes tenham mudado de mãos diversas vezes, começando quando o estúdio vendeu os curtas pré-1950 para a distribuidora de televisão U.M.&M., em 1955. Em vez da familiar montanha Paramount, a maioria das cópias ainda preservadas dos curtas dos Fleischers tem a logo U.M.&M., que a companhia de TV emendou nos negativos originais das animações quando elas foram adquiridas.
Agora, por um percurso altamente sinuoso, os filmes dos Fleischers voltaram a ter a Paramount como lar, e a companhia começou a licenciá-los para a sua primeira aparição oficial em blu-ray por meio do distribuidor independente Olive Films. Um primeiro volume, que inclui 12 novos curtas remasterizados que a Olive afirma nunca terem sido disponibilizados em DVD ou blu-ray, está sendo lançado esta semana nos EUA (US$ 29,95 o blu-ray e US$ 24,95 o DVD). O segundo volume será lançado em 24 de setembro.
Com a nitidez e a clareza dos desenhos originais feitos com bico de pena, os filmes restaurados parecem melhores do que nunca. Embora não tenham cor, volume ou qualquer coisa além do sentido mais rudimentar da perspectiva renascentista (estes foram todos elementos que a Disney iria desenvolver, em oposição consciente aos Fleischers, durante a década de 1930), eles têm excelentes qualidades gráficas, em particular um senso de caligrafia de linha que sugere fortemente a mão de um artista individual.
Os Fleischers brincaram com esse conceito nas suas animações da era do silêncio, pré-desenhos de Boop, intituladas coletivamente “Out of the inkwell”, por meio de uma inovadora mistura de atores reais e animação que fazia parecer que um cartunista de carne e osso (normalmente interpretado por Max) trazia personagens à vida ao mergulhar seu bico de pena no tinteiro e desenhá-los em uma prancheta, até o ponto em que eles assumiam vontades e identidades próprias. “Betty Boop’s rise to fame”, um curta autorreflexivo de 1934 em que um jornalista entrevista “Tio Max” sobre a carreira das suas criações mais famosas, faz uma homenagem a esses filmes mais antigos, com Max evocando Betty de um tinteiro em sua mesa e soltando-a em esboços de fundos de três curtas anteriores.
Tal como os primeiros desenhos animados de Walt Disney evocaram o contexto rural de suas experiências infantis no Kansas, o trabalho dos Fleischers refletiu sua educação em uma Nova York rica de etnias — quando Betty conhece alguns residentes do sul da ilha em “Betty Boop Bamboo Isle”, eles a saúdam com “Shalom aleichem!”. Se Disney foi inspirado por animais de fazenda, os Fleischers encontraram seus modelos nos habitantes da Times Square, onde seus estúdios ficaram localizados por muito tempo. Betty tem obviamente um tempero do gênero veudeville, sempre pronta para entrar em canções e entreter o público que se reúne ao seu redor.
Em sua primeira aparição, na animação “Dizzy dishes”, de 1930 (não incluída na coletânea em blu-ray), Betty se move e se apresenta como uma cantora canina em um cabaré frequentado por gatos, gorilas e hipopótamos. Ela claramente foi criada para ser uma caricatura da cantora da Broadway Helen Kane, que popularizou o “boop-boop-a-doop” como frase de efeito. Mas, quando Kane processou a Paramount pela apropriação indevida de sua performance, após Betty se tornar uma estrela, a cantora perdeu o processo.
Betty foi interpretada com a voz de muitas cantoras com o passar dos anos, no entanto mais indelevelmente por Mae Questel, que dublou a personagem Olívia Palito no desenho “Popeye”, também dos Fleischers.
Quando Betty se tornou a estrela de sua própria série, em 1932, virou uma figura reconhecidamente humana, cujos amigos mais próximos permaneceram, misteriosamente, um cachorro (Bimbo) e um palhaço de circo (Koko), que haviam aparecido em animações antigas dos Fleischers.
Embora Bimbo e Koko normalmente se comportem como crianças, os filmes frequentemente os mostram olhando de soslaio para a amiga. E quando ela passa, até mesmo objetos inanimados têm uma maneira de reagir que não exige uma análise freudiana.
No entanto, o rosto angelical de Betty parece não perceber o feitiço erótico que ela lança no mundo antropomórfico ao seu redor, mesmo quando em “Bamboo Isle” sua dança hula de topless faz com que uma flor se desprenda do chão e mergulhe de cabeça na areia.
Bem mais tarde, Marilyn Monroe fingiria uma ingenuidade semelhante em filmes como “Os homens preferem as loiras” para ludibriar os censores (ela não poderia ser culpada por algo do qual não tinha consciência), e, por um tempo, isso funcionou com Betty também.
Mas, à medida que Hollywood mudou para a salubridade forçada aplicada pelo Código de Produção, até mesmo o desenho sensualizado de Betty não poderia resistir. No início, os Fleischers combateram sua percebida promiscuidade dando a ela um namorado fixo (chamado Freddie), mas até mesmo essa ligação desapareceu no fim da série.
O último desenho desta primeira seleção em blu-ray, “The foxy hunter”, de 1937, mostra Betty brincando de mãe solteira com dois novos personagens: um adorável cachorro inteiramente novo chamado Pudgy e um pequeno menino chamado Júnior. À medida que os dois amigáveis personagens se metem em confusões previsíveis, Betty fica em casa na cozinha, suas pernas escondidas por um avental de dona de casa, enquanto ela trabalha com uma tigela.
Mas os astutos Fleischers podem ter deixado uma pitada do passado escarlate de Betty em sua última animação. Hey, Júnior, quem é o seu pai?