RIO — Letras de funk como “um tapinha não dói” podem até ser de mau gosto, mas não incitam a violência, de acordo com decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, publicada nesta semana. O TRF4 absolveu a Furacão 2000, responsável pela música “Um tapinha não dói”. A empresa havia sido condenada em primeira instância a pagar R$ 500 mil de indenização por danos morais para o Fundo Federal de Defesa dos Direitos. O processo envolvia também o hit sertanejo "Tapa na cara".
A ação foi movida em 2003 pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, sob o argumento de que as letras banalizam a violência contra a mulher, transmitem visão preconceituosa contra a imagem da mulher e seu papel social, e dividem as mulheres em “boas” e “más” conforme sua conduta sexual.
No recurso julgado esta semana, o desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Júnior afirma que não há prova psicológica, sociológica, antropológica, política ou técnica de que letras de “mau gosto” possam gerar sentimentos negativos em relação às mulheres.
“O que importa considerar é que o contido nas letras não parece atentar contra as liberdades individuais ou contra os direitos das mulheres e dos cidadãos brasileiros, não configurando hipóteses de violência contra a mulher”, escreveu o desembargador em seu voto.
Rômulo Costa, produtor da Furacão 2000, comemorou a notícia, mas lamentou a lentidão da justiça.
— Para mim foi uma grata surpresa, imagina se tivéssemos de pagar o valor da demanda. Corrigido, chegaria perto de R$ 3 milhões. É uma questão de liberdade de expressão, felizmente a justiça não falha, mas é um pouco lenta. Estamos hoje em meio a uma briga judicial que impede os garotos do grupo MC Federado e os Lelek’s de se apresentarem, sob pena de multa de R$ 100 mil. Isso é um prejuízo que não tem reparação. São garotos humildes, como todos do funk. Se estivessem fazendo shows hoje estariam faturando no mínimo R$ 200 mil por mês.
Representante da Themis, a advogada Denise Dora concorda com a crítica de Rômulo em relação à morosidade da justiça, mas por outros motivos:
— Em alguns casos essa morosidade é uma estratégia da justiça, porque afasta dos holofotes. É uma pena que essa discussão tenha sido adiada por dez anos — afirma Denise, garantindo que a organização vai apelar na Justiça, apesar de ainda não ter tido acesso à íntegra do acórdão. — O objetivo desta ação foi mostrar que a violência não é algo natural, é uma prática que vem de uma construção cultural. Foi um processo emblemático, porque não dá pra ter uma música que naturalize o fato de se bater em uma mulher.
Segundo a assessoria do TRF4, o desembargador frisou que o Judiciário deve levar em consideração o contexto social no qual as músicas foram criadas.
“Estamos falando de gêneros musicais como o funk e o pagode, que têm outras origens, se baseiam em outros princípios, são frutos de outra realidade. Estamos diante de gêneros musicais das camadas mais marginalizadas, de formas de expressão artística que não têm o refinamento da música erudita, mas que têm forte apelo popular. Não importa se gostamos ou não desses ritmos. Eles existem e são formas de expressão de mundos brasileiros, falam do Brasil de muitos brasileiros”, observou.
Por coincidência, a decisão do TRF4 saiu no mesmo dia em que o ator Dado Dolabella foi absolvido pela justiça pela agressão contra a ex-namorada e atriz Luana Piovani.
— A Lei Maria da Penha cria um movimento de responsabilidade do Estado de punição da violência. Mulheres que se sentiam intimidadas hoje acusam quando apanham — avalia a advogada Denise Dora Com isso, há um movimento de volta como essas decisões judiciais. Há uma migração da violência de geração para geração que deve ser alvo de debate da sociedade, com mediação do judiciário.