Ele foi acusado de fazer sexo com menores de idade. Aos 27 anos, se casou com uma garota de 15. Algumas mulheres o acusam de manter um culto sexual emocionalmente abusivo. Mas, apesar de mais de duas décadas de denúncias persistentes, R. Kelly nunca foi condenado por um crime ou viu sua carreira musical prejudicada.
A campanha #MuteRKelly, criada para puni-lo legal e comercialmente, espera mudar isso, aproveitando a nova atenção que o caso ganhou nos últimos dias após a exibição do documentário "Surviving R. Kelly", da Lifetime, com seis episódios dedicados à relação do cantor com mulheres. Procuradores em Chicago e Atlanta começaram a investigar a conduta de Kelly.
— Ele usa seu talento para atacar mulheres, abusar de nós — diz Asante McGee, que aparece no documentário. McGee afirma que Kelly a proibiu de olhar nos olhos de outros homens e exigia que ela pedisse permissão para sair do quarto ou ir ao banheiro. — Uma pessoa normal não teria saído ilesa como ele conseguiu.
O documentário já teve consequências. Algumas estações de rádio pararam de tocar sua música, e um show em Illinois foi cancelado. Além disso, sua gravadora, a RCA/Sony, congelou os investimentos em seus projetos até as investigações criminais em Atlanta e Chicago terem algum resultado.
Mas esses processos enfrentam desafios significativos e a gravadora tem vários motivos para decidir mantê-lo em seu catálogo, mesmo com os pedidos cada vez mais frequentes por um ajuste de contas.
Ele já foi julgado antes
Entre as denúncias antigas contra Robert Kelly, de 52 anos, estão as relações sexuais com menores. O cantor enfrentou ações do tipo desde a década de 1990. Há mais de 20 anos, a revista Vibe questionou a validade de uma certidão alegando que Kelly havia se casado com a cantora Aaliyah quando ela tinha 18 anos. Na verdade, ela tinha 15 anos e o casamento foi anulado. (Aaliyah morreu em um acidente de avião em 2001.)
O advogado de Kelly, Steven Greenberg, esteve no "Good Morning America", da ABC, na sexta-feira, quando ameaçou processar a Lifetime por difamação. Ainda segundo ele, Kelly nega ter tido qualquer relacionamento sexual com menores de idade e diz que não sabia que Aaliyah tinha 15 anos quando eles se casaram.
Na terça-feira, a procuradora Kimberly M. Foxx, do estado de Illinois, pediu publicamente que possíveis vítimas e testemunhas se apresentassem. Promotores em Fulton County, na Geórgia, onde Kelly morou, também começaram a coletar informações. Mesmo assim, qualquer caso pode ser difícil de julgar. As pessoas tendem a levar muitos anos para apresentarem queixas — com isso as memórias se desvancecem e os registros desaparecem.
— Esses casos são difíceis porque, tipicamente, o crime ocorre a portas fechadas — diz Marci Hamilton, fundador da Child USA, que propõe políticas para lidar com o abuso sexual de crianças.
O histórico jurídico de Kelly também pode, de certa forma, dificultar a missão de levá-lo aos tribunais. Em 2008, ele foi absolvido de acusações de pornografia infantil, apesar dos procuradores apresentarem um vídeo de 27 minutos no qual ele apareceria fazendo sexo com uma menina de 13 anos e urinando nela. Mas a garota no vídeo nunca testemunhou, e os advogados de Kelly argumentaram com sucesso que sua identidade não poderia ser comprovada. Essa experiência pode deixar os promotores cautelosos.
— Às vezes, há uma relutância em voltar (a casos assim) — diz Paul Mones, advogado que representa vítimas de abuso infantil.
Livre arbítrio em pauta
As alegações mais recentes contra Kelly, muitas apresentadas em primeira mão pelo jornalista Jim DeRogatis, do "BuzzFeed News", giram em torno do que foi descrito como um culto sexual. Kelly é acusado de manter um controle quase total sobre as mulheres que viviam ou viajavam com ele, ditando seus movimentos, quando podiam comer e quando podiam ir ao banheiro. Segundo o advogado do cantor, as mulheres que viviam com ele eram atraídas por uma “vida de rock 'n' roll” e estavam lá voluntariamente.
— Eram relacionamentos perfeitamente consensuais— , disse Greenberg à CBS. — Seja lá o que tiver acontecido, não estou na posição de ficar julgando, nem qualquer um deveria estar julgando os relacionamentos pessoais de alguém, o que acontece em seus quartos.
Ele chama as participantes do documentário de "um bando de pessoas descontentes que estão procurando seus 15 minutos de fama na TMZ".
As acusadoras de Kelly dizem que ele faz "lavagem cerebral" nas mulheres para que sejam submissas, mas casos envolvendo controle psicológico são excepcionalmente difíceis de provar, dizem os advogados.
Em “Survinving R. Kelly”, uma pessoa identificada como ex-funcionária do cantor disse que faria as mulheres escreverem declarações falsas para incriminar a si mesmas ou seus pais. O ex-funcionário descreveu essas declarações, e as fitas de sexo que Kelly registrou das mulheres, como uma forma de seguro para impedi-las de falar. Mesmo que os atos fossem considerados criminosos, apresentar um caso é difícil sem a colaboração de vítimas.
Os pais de uma mulher que supostamente está vivendo com Kelly, Joycelyn Savage, dizem que ela está sendo mantida contra sua vontade, de acordo com seu advogado, Gerald A. Griggs. Mas em uma entrevista em vídeo publicada pela TMZ em julho, Savage garantiu não ser prisioneira de Kelly e estar satisfeita com ele.
A procuradoria do condado de Cook recebe denúncias sobre Kelly desde que Foxx fez seu apelo público. Policiais foram em busca dele na Trump Tower, em Chicago, na sexta-feira, depois de receberem uma denúncia de que duas mulheres estavam sendo mantidas contra a vontade. Uma porta-voz do departamento disse que duas mulheres foram encontradas e disseram estar lá voluntariamente.
Música ainda em alta
Como a reação do público ao documentário cresceu, algumas estações de rádio prometeram parar de tocar sua música. De acordo com a Mediabase, que acompanha a audiência estações de rádio, a reprodução de canções de Kelly caiu de mais de 220 vezes por dia nos últimos meses para menos de 100, alguns dias após o documentário ir ao ar.
Além disso, um concerto marcado para abril em Springfield, Illinois, teve sua autorização negada pelo governo local por "riscos de segurança estimuladas por protestos anti-Kelly", segundo o "Chicago Tribune".
As atenções estão voltadas para a gravadora de Kelly, a RCA, uma divisão da Sony Music Entertainment. Apesar da gravadora ter congelado os investimentos na carreira do músico, o contrato ainda segue válido e ele tem dois álbuns a gravar. De acordo com advogados e executivos da indústria, a possível anulação do contrato tem menos a ver com riscos jurídicos e mais com o desejo da RCA — e quanto isso custaria para a gravadora.
Dispensar um artista conhecido não é uma decisão simples. Por mais que a reputação da empresa possa sofrer agora por manter Kelly na lista, os executivos da RCA podem estar ponderando os riscos de serem acusados de censura ou de abandonarem suas obrigações contratuais.
Muitos executivos apontaram para a fúria da indústria em 2018, quando o Spotify instituiu uma política de “conduta odiosa” vagamente articulada que parecia afetar em grande parte os artistas negros, incluindo Kelly. A política — que removeu o trabalho de alguns artistas das playlists oficiais do Spotify — foi cancelada três semanas após o anúncio.
Depois, há a questão dos muitos fãs de Kelly. Ao final da primeira transmissão ao vivo da Lifetime de “Surviving R. Kelly”, reproduções diárias de suas músicas nos Estados Unidos mais que dobraram, segundo a Nielsen, de 1,9 milhão no dia anterior ao início da série, para 4,3 milhões em seu último dia.
O álbum mais recente de Kely pela RCA foi "12 Nights of Christmas”, de 2016. Apesar de seu contrato ser privado, advogados do setor disseram que o desequilíbrio de poder da maioria dos contratos com artistas provavelmente dá à RCA muitas maneiras para cancelar o negócio.
— Você sempre pode demitir um artista — diz Elliot Groffman, um advogado de música em Nova York. — A única questão é quais obrigações você tem com o artista se demiti-lo.
Embora cláusulas morais sejam raras em acordos de gravadoras, vários advogados disseram que a severidade das acusações contra Kelly e o fato dos promotores estarem investigando-o podem permitir a RCA argumentar que sua associação com Kelly se tornou prejudicial à empresa, e dar a ele uma saída.
Kelly poderia sempre acusar a RCA de violar seu contrato por “má fé”, intencionalmente deixando de cumprir suas obrigações, mas isso é improvável, disse Laurie L. Soriano, advogada de música em Los Angeles.
— Acho que ninguém consideraria isso uma questão de má fé — diz Soriano — considerando a situação da qual estamos falando.