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A longa corrida do ouro de um diretor para filmar ‘Serra pelada’

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RIO — Logo no início do longo trabalho que teve para fazer seu novo documentário, o diretor Victor Lopes recebeu um conselho de um dos personagens. Ele estava no Pará, em 2002, começando a rodar as primeiras imagens de “Serra Pelada — A lenda da Montanha de Ouro”. Um garimpeiro foi procurá-lo, com um alerta, minimamente inusitado, mas certamente expressivo:

— Ele disse que eu não sabia onde estava me metendo. E perguntou: “Quantas vezes você já teve que matar seu melhor amigo?”

Nos dez anos em que Lopes trabalhou no filme, ele não matou seus melhores amigos, mas compreendeu a mensagem: a história de Serra Pelada envolve drama, política, violência, perdas, sonhos e um contexto social que ajuda a explicar muito do que o Brasil passou nas últimas quatro décadas. Essa saga terá suas primeiras exibições no Festival É Tudo Verdade, em São Paulo na terça-feira (às 21h, no Cine Livraria Cultura), e no Rio, na quinta (às 15h e às 21h, no Cinépolis Lagoon).

O documentário mostra como, desde os anos 1980, Serra Pelada é alvo de uma corrida por ouro que transformou um monte de 150 metros de altura numa lagoa de 150 metros de profundidade. Tudo pela ação de milhares de pessoas que foram para lá com a esperança de enriquecimento. A região chegou a ter 115 mil garimpeiros ao mesmo tempo, divididos no trabalho de escavar, retirar a terra e escavar mais.

— Serra Pelada foi a segunda maior concentração de trabalho humano depois das pirâmides do Egito — afirma Lopes. — O lugar é uma síntese da História do Brasil, que vem do fim da ditadura até os dias de hoje. O peso do comunismo na região era muito forte naquela época, no fim dos anos 1970, e houve até uma lenda de que os comunistas distribuíam terra por lá. Então, aquela corrida de ouro acabou sendo permitida como uma coreografia do governo militar para combater os efeitos da Guerrilha do Araguaia.

O espaço em que ocorreu a exploração do ouro em Serra Pelada pertencia à Companhia Vale do Rio Doce, na época uma empresa estatal. Só que, assim que o boato de que havia ouro no monte se espalhou, as pessoas passaram a largar seus trabalhos em busca do sonho dourado. Da noite para o dia, desempregados e doutores, peões e agricultores, comerciários e comerciantes, todo tipo de gente deixou o que estava fazendo para se tornar garimpeiro.

A única forma de tirar todas aquelas pessoas seria com a ação do governo, mas o próprio presidente João Figueiredo chegou a visitar o local para dizer que iria incentivar os garimpos que aparecessem. Para a Vale, de acordo com o filme, restou uma volumosa indenização em dinheiro. Paga, claro, pelo próprio governo.

Um dos entrevistados do filme é o engenheiro Eliezer Batista, na época presidente da Vale do Rio Doce, para quem “Serra Pelada é o exemplo da falta de respeito no Brasil”.

— O Eliezer chegou a ser ameaçado de morte por causa de Serra Pelada. Eu lembro que, quando contei a ele sobre o projeto, ele disse que seria um filme diabólico — conta Lopes, cujos trabalhos anteriores incluem os filmes “Eliezer Batista — O engenheiro do Brasil” (2009), “As aventuras de Agamenon, o repórter” (2012) e “Língua — Vidas em português” (2002). — Minha equipe também chegou a ser ameaçada durante as filmagens. Mas, aos poucos, consegui o respeito deles, alguns até me chamam de garimpeiro. Estive lá mais de 15 vezes.

Outro personagem de destaque no documentário é Sebastião Rodrigues de Moura, um ex-militar e deputado federal, que ficou conhecido como Major Curió. Ele foi um dos principais oficiais a combater as forças da Guerrilha do Araguaia e acabou permanecendo na região, onde se tornou uma liderança política. A presença de Curió no sul do Pará é tão forte que uma cidade foi batizada de Curionópolis. No filme, porém, ele diz que não teve a ver com a homenagem. Mas Curió, claro, foi prefeito de Curionópolis.

— O Curió é nosso Coronel Kurtz — compara Lopes, em referência ao papel de Marlon Brando no filme “Apocalypse now” (1979). — Ele é um dos grandes personagens da História contemporânea do Brasil.

No filme, há ainda uma série de entrevistas com nomes bem menos conhecidos. São os anônimos de Serra Pelada, alguns que enriqueceram, outros que estão na miséria, todos com um fascínio pela corrida do ouro — que se mantém até hoje, com novas empresas atuando na região ao lado de cooperativas de garimpeiros, com esperança de achar novas jazidas. Essa parte da História do Brasil, indica o filme de Lopes, ainda está longe do fim.


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