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Keith Haring e as areias do tempo

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RIO - Keith Haring já foi à Bahia. E curtiu. Numa série de viagens, realizadas entre 1984 e 1986, o artista americano fez da pequena cidade de Serra Grande, próxima a Ilhéus, uma espécie de refúgio para sua agitada vida em Nova York, onde criou história a partir de uma série de desenhos no metrô, no começo daquela década. Mesmo isolado do seu universo urbano, sem telefone e praticamente sem luz, o inquieto Haring — morto por complicações decorrentes da Aids, em 1990, aos 31 anos — encontrou ali inspiração para seguir pintando e grafitando, de maneira informal e descontraída, o que via pela frente, de paredes em bares a colunas em casas de pescadores.

Quase trinta anos depois de sua primeira visita ao local, a maior parte dos seus desenhos se foi, apagada pelo tempo ou por moradores desavisados. Alguns poucos, porém, resistiram; o principal deles um mural, pintado no chão de uma cabana, em frente ao mar, no terreno pertencente a um amigo de Haring, o artista plástico Kenny Scharf. A restauração desse trabalho — uma das 50 obras públicas de Haring espalhadas pelo mundo —, realizada no ano passado, a partir de três pequenos traços que suportaram a ação da maresia e do vento, além do acúmulo de areia, virou o elemento central do filme “Restless: Keith Haring in Brazil”.

Dirigido por Guto Barra e Gisela Matta, o documentário — feito em parceria com a Keith Haring Foundation e previsto para ter sua estreia no próximo Festival do Rio, em setembro — mostra esse processo e aproveita para contar mais dessa pouco conhecida relação entre a incensada estrela da pop art — que trabalhou com Madonna, Grace Jones, Yoko Ono, Bill T. Jones, William Burroughs e Andy Warhol, entre outros — e o Brasil, lugar que visitou pela primeira vez em 1983, para a Bienal Internacional de Arte de São Paulo.

— Serra Grande era um universo completamente diferente daquele que vivíamos em Nova York nos anos 1980, e o local, sem dúvida, teve um forte impacto em Keith — conta Scharf, que comprou um terreno na cidade em 1983, logo após ter se casado com Tereza, moradora de Ilhéus. — Quando tive minha primeira filha, Zena, em 1984, Keith veio nos visitar, junto com alguns amigos de Nova York. E voltou diversas outras vezes, encantado com a beleza da região. Ele vivia de sunga e sandálias o dia inteiro. E tinha contato com as crianças, os pescadores e os capoeiristas, que depois acabou, inclusive, reproduzindo em seus desenhos. Acho que sua obra ficou ainda mais colorida depois da relação com todo aquele ambiente.

Foi o projeto do filme, nascido a partir de uma conversa entre Barra (que dirigiu “Beyond Ipanema”, documentário sobre o impacto da música brasileira no exterior) e Julia Gruen, diretora da Keith Haring Foundation, que deu impulso para que a restauração do mural acontecesse.

— Era o final de 2011. Ficamos conversando sobre o Brasil, com ela me contando da paixão de Haring pelo país — conta o diretor, que é radicado em Nova York, assim como Gisela. — Ela me falou, então, desses trabalhos dele, esquecidos em Serra Grande, em particular esse mural na casa do Kenny Scharf. Sugeri, então, fazermos um filme documentando a restauração desse trabalho.

Quando chegou ao local, alguns meses depois, acompanhada por Scharf e pelo restaurador Alex Neroulas, a equipe verificou que o trabalho seria mais complexo do que o imaginado. Os desenhos de Haring estavam praticamente invisíveis e o chão da cabana quase todo cinza, cor do cimento usado no piso original. Foi preciso que Scharf usasse uma foto em polaroide, feita pelo próprio artista e cedida pela Keith Haring Foundation, para que o trabalho fosse feito.

— Foi como montar um quebra-cabeças — lembra Scharf. — Precisei olhar várias vezes para a foto para saber o ângulo certo das imagens e seu encaixe. Mas depois que começamos a refazer os primeiros traços, tudo correu bem. Em dez dias, completamos tudo.

O filme mostra um pouco desse trabalho e, principalmente, o deslumbrante resultado final, com os famosos bonecos de Haring formando um “abraçaço” em torno de figuras de golfinhos, nas cores azul e branca.

— Os trabalhos públicos de Keith normalmente são restaurados por museus, em parceria com a fundação mas esse mural de Serra Grande foi feito numa propriedade particular. É algo de imenso valor pessoal para Kenny, Tereza e sua família — explica Julia. — Sua restauração foi, acima de tudo, um ato de amor, feito por pessoas que conheciam Keith na intimidade.

“Restless” revela também a restauração de outra imagem, de uma espécie de “homens-golfinho”, feita em uma parede da casa do casal.

— Essa foi bem mais difícil, já que o meu cunhado tinha simplesmente pintado toda a parede por cima enquanto eu estava fora — diz Scharf, que hoje mora entre Los Angeles e Nova York e visita a propriedade apenas uma ou duas vezes por ano. — Queria matá-lo quando descobri. Felizmente, conseguimos encontrar as imagens intactas por baixo da tinta.

Esses momentos de redenção artística são entremeados no filme por depoimentos de outros amigos de Haring e Sharf, como o brasileiro Bruno Schmidt. A voz do artista — que teve sua obra revista no Brasil em 2010, com a exposição “Selected works", que passou por Rio e São Paulo — surge em off, em breves reflexões sobre o seu trabalho (outra cortesia da KHF), enquanto a câmera passeia pela cidade e, ao fundo, rolam músicas do grupo (brasileiro) Stop Play Moon.

— Umas das coisas mais emocionantes que sentimos fazendo o filme foi encontrar várias pessoas na praia e nas ruas da cidade ainda usando camisas dadas pelo Keith Haring, com aqueles desenhos típicos dele — conta Barra. — A maior parte delas, claro, estava rasgada, com furos, bem desgastadas pelo tempo, mas servem, até hoje, como lembranças da passagem dele por Serra Grande.


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