RIO - Falta um ano para o cinquentenário do golpe de 1964, mas um dos principais personagens do turbilhão político responsável pela instauração da ditadura militar no país, o ex-presidente João Belchior Marques Goulart (1919-1976), já mobiliza a atenção do cinema documental brasileiro. Teorias de conspiração em torno de sua “retirada” do poder e de sua morte e revisionismos históricos acerca de sua importância para a discussão da reforma agrária alimentam dois longas-metragens inéditos — “O dia que durou 21 anos”, de Camilo Tavares, e “Dossiê Jango”, de Paulo Fontenelle — e uma retrospectiva no festival É Tudo Verdade (5 a 14 de abril no Rio). O primeiro da fila é o filme de Tavares, que estreia nesta sexta-feira, em 11 salas de sete capitais do país, endossado por críticas elogiosas em mostras no exterior.
Orçada em R$ 1,8 milhão, a produção, em ritmo de thriller, foi iniciada há oito anos. Seu foco são as imagens de arquivo e registros em áudio (até então desconhecidos) que comprovam o envolvimento da CIA e do governo dos EUA (representado aqui pelo embaixador Lincoln Gordon) no golpe militar. Os “21 anos” do título fazem referência ao período de duração do regime militar, de 1964 a 1985.
Elogios americanos para ‘o dia...’
Filho do jornalista Flávio Tavares, referência nas pesquisas sobre os bastidores da ditadura, Camilo, um estreante em longas aos 41 anos, costura na tela os telegramas trocados entre a CIA e o embaixador. Busca ainda documentos que conectam as Forças Armadas brasileiras à Casa Branca, num esforço de avaliar uma possível “esquerdização” do Brasil sob as rédeas de Jango.
— Quando meu pai me trouxe uma antiga pasta que José Silveira, do “Jornal do Brasil”, tinha lhe dado, com fac-símiles de telegramas do embaixador Gordon, datados de 1961, percebi que tínhamos nas mãos algo inédito e até então confidencial. Em 2004, a Casa Branca liberou documentos que facilitaram nosso trabalho — diz Camilo, que resgatou o áudio de uma explosiva conversa entre o presidente americano John Fitzgerald Kennedy e Gordon sobre o destino do Brasil. — Nessa conversa, de 1962, já fica clara a movimentação civil e militar para derrubar Jango.
Exibido nos EUA em mostras em Nova York e no Arizona, “O dia que durou 21 anos” impressionou a crítica americana por sua investigação, sendo definido pela revista “Variety” como “um documentário revelador”. Já a resenha publicada pela “The Hollywood Reporter” ressaltou o clima de suspense da narrativa de Camilo, classificando o longa como “uma aula de História com uma intriga digna de filmes de espiões”.
— O ritmo da narrativa tem a intenção de atrair o público jovem, investindo em uma arte gráfica em 2D e em 3D, na reconstituição da frota naval americana — diz Camilo.
Ganhador dos prêmios de júri popular do Festival do Rio e da Mostra de Cinema de Tiradentes, “Dossiê Jango”, de Paulo Henrique Fontenelle, diretor de “Loki — Arnaldo Baptista” (2008), também aposta em uma linguagem investigativa próxima de policiais hollywoodianos. Previsto para estrear em julho, o longa, produzido pelo Canal Brasil, revisita o período em que Goulart viveu no exílio, abordando as suspeitas relacionadas à sua morte, na Argentina, incluindo hipóteses de assassinato.
Fontenelle reúne evidências suspeitas por trás da morte do ex-presidente, entre elas o fato de ele ter sido enterrado imediatamente, sem autópsia, de o trajeto até o túmulo ter sido acompanhado pelo Serviço Nacional de Inteligência, e de sua certidão de óbito ter sido assinada por um pediatra.
— Jango foi a origem de tudo. Suas ideias progressistas e seu plano de governo foram responsáveis por sua absurda deposição em 1964, resultando em 21 anos de ditadura e, consequentemente, em completo silêncio sobre sua história e a de nosso país — diz Fontenelle. — O saldo disso foi a implementação de “histórias oficiais” que mais trazem dúvidas do que respostas sobre o que ocorreu de fato.
O ex-presidente ganha ainda uma seção inteira na 18ª edição do É Tudo Verdade, o maior festival de documentários do Brasil, que será aberto ao público carioca na próxima sexta-feira, no Cinépolis Lagoon, no Instituto Moreira Salles, no Centro Cultural Banco do Brasil e no Espaço Museu da República.
Curtas de oposição
Entre os nove títulos da mostra Jango e O Caminho para 1964 está uma série de sete curtas-metragens realizados a partir de 1962, em oposição a Goulart, sob a égide do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o sucesso de bilheteria “Jango” (1984), de Silvio Tendler, visto por 560 mil pagantes.
— O historiador Jorge Ferreira é certeiro ao escrever na introdução de sua recente biografia de João Goulart que seu trabalho se insere em “um movimento historiográfico que, a bem da verdade, vem tardiamente”. O mesmo poderia ser dito do atual movimento cinematográfico em torno de Jango e de 1964, com a notável exceção do “Jango” de Silvio Tendler — diz Amir Labaki, curador do É Tudo Verdade. — Foi necessário o aparecimento de uma nova geração de cineastas que, ao contrário de Tendler, nasceram após o golpe, para fazer Jango voltar ao primeiro plano.
De Tendler, Labaki trouxe ainda “Os anos JK”, visto por 800 mil espectadores em 1980, que expõe raízes do golpe.
— “Jango” ainda é visto pelos jovens como uma fonte de História — orgulha-se Tendler. — O Brasil vem reencontrando nas salas escuras sua imagem, que havia sido sequestrada e aprisionada pela ditadura.