SÃO PAULO - Movimento atípico na hora do almoço de uma quinta-feira em frente a um restaurante japonês na Rua dos Estudantes, no coração da Liberdade, bairro central de São Paulo que reúne a maior colônia de imigrantes e descendentes de orientais da metrópole. Caminhões e vans estacionados em frente ao local e nas ruas laterais despertam a atenção de pedestres, que diminuem o passo para observar o vaivém da equipe cada vez mais numerosa.
Em menos de uma hora, o restaurante, ainda com alguns clientes terminando suas refeições, está pronto para a gravação de uma cena da nova trama das 19h, “Sangue bom”. Escrita por Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari, o folhetim substituirá “Guerra dos sexos” em abril.
Desde o início de fevereiro, uma equipe de 150 pessoas e quatro caminhões lotados de equipamentos estão na capital paulista para gravar cerca de 400 cenas da novela ambientada em São Paulo.
Únicos atores nesta gravação, Malu Mader e Felipe Camargo deixam o trailer e entram no restaurante para ensaiar com o diretor de núcleo da trama, Dennis Carvalho. A cena é um reencontro de seus personagens no folhetim, Rosemere e Terácio, após 20 anos. Eles oscilam entre a tensão, o sarcasmo e o esboço de um desejo de reaproximação. O diretor pede um jogo de gato e rato. Rosemere tem algo urgente a dizer, mas Terácio, um aristocrata falido, preferiria recuperar o tempo perdido e certificar-se de que Felipe (Josafá Júnior) é seu filho, como afirma a garçonete com quem rompeu abruptamente há algum tempo.
“Sangue bom” revisita esse romance que não deu certo no passado, mas é totalmente focada no presente. Os seis jovens protagonistas da trama se dividem entre os que buscam a fama superficial e momentânea em contraponto aos que buscam realização pelo trabalho duro. O florista Bento (Marco Pigossi), a it-girl Amora (Sophie Charlotte) e o bad boy Fabinho (Humberto Carrão) são órfãos que viveram parte da infância juntos num abrigo na Casa Verde, bairro simples da Zona Norte de São Paulo. A doce Malu (Fernanda Vasconcellos), a corinthiana Giane (Isabelle Drummond) e o playboy Maurício (Jayme Matarazzo) também buscam, entre encontros e desencontros, a felicidade.
— A cultura da celebridade é uma das discussões centrais da trama. A atual distorção de valores é um tema que nos mobilizava já na época de “Tititi”. A partir de Bárbara Ellen (Giulia Gam), a mãe adotiva de Amora, que foram as primeiras personagens que nos ocorreram, pensamos em criar uma história que girasse em torno do fato de pessoas serem capazes de qualquer coisa, inclusive de se humilharem, para aparecerem na mídia. Uma vez alçadas à condição de celebridades, passam a fugir dos repórteres e fotógrafos e a clamar por privacidade — explica Maria Adelaide.
A cultura da celebridade não é só um fenômeno brasileiro, mas uma epidemia universal, que contaminou todos os segmentos sociais, constatam a autora.
— A essência da telenovela é refletir o nosso tempo e aquilo que nos cerca. O desejo de ser famoso ou de assegurar a constante presença na mídia será a preocupação de alguns de nossos personagens, independentemente da sua classe social. Tudo isso, é claro, bem temperado pela emoção.
Os escritores foram buscar contraste para essa sede por holofotes numa São Paulo raramente vista na TV. Bairros como Casa Verde, Imirim e Jardim São Bento (todos na Zona Norte) nunca foram cenários de telenovelas. Lá, vizinhos ainda preservam o hábito de se conhecer pelos nomes e de pedir uma xícara de açúcar emprestada.
— A particularidade da Casa Verde é que, além de ser um dos últimos bairros com bastante vida comunitária, é uma área com vida boêmia e musical intensa, temas que serão abordados em “Sangue bom” — adianta a autora.
Rosemere, personagem de Malu, mora num apartamento na Casa Verde e trabalha como garçonete num bar de música ao vivo no bairro. Batalhadora, criou o filho sozinha. Acredita no talento de Felipinho como ator de musicais. Mas em vez de trilhar o caminho de cursos de canto, dança e interpretação indicado pela mãe, o jovem ganha fama graças a um incidente divulgado na internet.
— A mãe queria que ele fizesse sucesso como ator de teatro musical como consequência de muito trabalho duro. De repente, ele fica famoso por meio da internet. Ela reage, tem medo de que se aproveitem dele, disso ser vazio. Mãe e filho são pessoas de tempos diferentes, há o conflito de gerações. Mas o rapaz gosta da fama repentina — conta Malu.
Terácio, personagem de Felipe Camargo, é um artista plástico frustrado. Está acomodado a uma vida de alta sociedade, cheia de regras, modos e disciplinas. Casou-se com uma mulher que não amava e deixou no passado seu breve caso com Rosemere.
— Espero que a retomada da relação com Rosemere e o contato com o filho seja uma transfusão de vida para Terácio. Mas onde esse reencontro vai dar, só mesmo Maria Adelaide e Vincent podem nos dizer — brinca Felipe.
Sobre o tema de “Sangue bom”, Malu lembra a famosa frase de Andy Warhol que previu um futuro no qual todos teriam seus 15 minutos de fama.
— Na época em que ele falou isso parecia só uma frase de efeito. Agora faz todo o sentido. Pegamos como atores uma fase de arrebentação, de transição brutal, e não temos como nos isentar disso. De alguma forma, todo ator quer ser reconhecido. O que vivemos hoje é tão distante do que sonhávamos quando decidimos ser atores... Mas se revoltar com isso é perda de tempo. Precisamos nos integrar ao mundo como ele é — analisa Malu.
Felipe concorda com a amiga e lembra que, em sua juventude, ser importava mais do que estar:
— O que você vai ser na vida é um processo longo. Hoje parece que o mais importante é estar na mídia, é ser visto. Isso é efêmero e vazio, porque há a necessidade de se preencher a partir do olhar do outro.