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Livro traz manuscritos inéditos de Cartola

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RIO - A letra é cursiva e desenhada com esmero, traçando um poema inédito sobre os tempos idos: “Será senhor que é pecado ser velho assim como sou (?) Será que esta juventude pensa que o tempo parou (?)”. Angenor de Oliveira só concluiu o ensino fundamental, morreu aos 72 anos, em 1980, consagrado como Cartola, em razão do chapéu que escolheu usar. Mas seus últimos escritos, revelados agora no livro “Divino Cartola — Uma vida em verde e rosa”, de Denilson Monteiro, mostram as amarguras de uma vida em sua maior parte dura.

Foi tipógrafo, porteiro, contínuo, lavador e guardador de carros. Vida na qual o reconhecimento artístico chegou tarde. Gravou quatro discos, o primeiro quando tinha 63 anos. Sua obra brilhante não lhe rendeu conforto: “É claro que sou imortal. Não tenho onde cair morto”, dizia, repetindo troça de Olavo Bilac, que lera na busca por formação própria.

“Eu não sei se corri ou se andei em passos lentos. Nem senti os ventos, se foram bons ou maus. Não sei dizer. Tinha vontade de novo os mesmo caminhos percorrer”, escreveu em “Não sei”, cuja letra manuscrita é uma das muitas encontradas por sua neta Nilcemar Nogueira. “Partindo do ponto inicial de onde a primeira vez parti, talvez sentiria agora coisas da natureza que outrora não senti”, compôs Cartola em um prosaico papel de pão.

baú de novidades a caminho

O livro de Denilson Monteiro não prima por informações biográficas novas. É um apanhado de informações sobre a vida de Cartola com origem em outras obras, em especial “Tempos idos”, de Marília Barboza e Arthur Oliveira, e na dissertação de mestrado em História de Nilcemar, intitulada “De dentro da Cartola: a poética de Angenor de Oliveira”.

O trunfo de “Divino Cartola” está nas imagens dos manuscritos reproduzidos, alguns inéditos. O livro se enquadra numa série de fotobiografias, que já abordou nomes como Noel Rosa.

— Minha preocupação foi escrever de uma forma agradável, além de ter feito entrevistas com personagens que conviveram com Cartola. Delegado, mestre-sala da Mangueira, conta que, no tempo dele, eram obrigados a colocar graxa no cabelo para alisá-lo — diz Monteiro.

Durante o processo de elaboração houve um desentendimento entre o jornalista Wagner Fernandes, inicialmente contratado para a empreitada, e a editora Casa da Palava. Fernandes desligou-se do projeto, mas não desistiu de realizar a sua própria biografia de Cartola. Pretende concluí-la em dois anos e tem a seu lado a própria Nilcemar, neta do compositor.

— Um artista da estatura de Cartola comporta mais de uma biografia. Tenho um baú inteiro de inéditos que pretendo abrir para esta obra mais completa, da qual serei parceira — diz Nilcemar.

— Uma biografia aprofundada exige tempo, por isso me desliguei do projeto inicial. Vamos fazer algo com um enfoque totalmente diferente deste livro agora — diz Wagner Fernandes.

Além de rico em imagens, “Divino Cartola” vem acompanhado de um CD com a gravação do último show de Cartola, realizado no Ópera Cabaré, em São Paulo, em 30 de dezembro de 1978. São 11 canções, entre as suas mais conhecidas, como “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho” e “Acontece”. É um livro caro, encontrado entre R$ 63,20 e R$ 80 nas livrarias.

Narra, por exemplo, a origem da Mangueira. A família de Cartola havia se mudado para o morro ao fim de um período em que vivia com mais tranquilidade em Laranjeiras, graças a um parente abastado. Primeiro, Cartola, Carlos Cachaça e amigos criaram o bloco dos Arengueiros, pois não tinham acesso aos grupos mais requintados da Zona Sul. O bloco cresceu e, em abril de 1928, nasceu a Mangueira.

Ismael Silva é reconhecido como o criador do termo escola de samba, no Estácio, cansado dos grupos que faziam arruaça com a música. O problema é que fundou a primeira escola de samba, a Deixa Falar, em agosto de 1928. Assim, os mangueirenses que conviviam no Estácio teriam se antecipado em alguns meses na formação de uma escola de samba, dizem alguns. Outros rebatem dizendo que o nome só se estabelece após a fundação da Deixa Falar por Ismael.

O encontro de Cartola com o maestro Heitor Villa-Lobos, em 1936, levou o compositor mangueirense a desempenhar um papel como ator no filme “O descobrimento do Brasil”, de Humberto Mauro. Villa-Lobos tornou-se frequentador do Buraco Quente, onde era a casa de Cartola na Mangueira, e do bar de Ifigênia, outro ponto tradicional do morro, aonde os dois compositores iam “tomar uma atitude”.

Em 1940, Villa-Lobos levou Cartola até o maestro polonês Leopold Stokowski, autor de trilhas de longas-metragens de Hollywood. Em um navio atracado na praça Mauá, o poeta gravou ao lado de Pixinguinha, Donga, João da Baiana.

O mangueirense cantou as próprias composições, no primeiro registro gravado de sua voz. Foram gravações de mais de oito horas. Dentro da política americana de boa vizinhança, no período tenso que antecedeu à Segunda Guerra Mundial, recebeu em troca sanduíches de peru com abacaxi e lombo com ameixa.

Em 1979, fazia quase quatro décadas que tinha gravado como cantor pela primeira vez, num disco que se tornou uma raridade. Cartola foi a São Paulo gravar um programa da TV Cultura. Quatro anos antes, lançara seu primeiro álbum próprio. Aos 68 anos, teve de enfrentar um repórter desagradável e de juízos estéticos duvidosos. “Cartola, você não é um bom intérprete, e sim um bom compositor. Então, por que canta as músicas que faz?”, perguntou o repórter

“É preciso que a gente cante. Mal ou bem, mas é preciso que a gente cante para o povo conheça o que fazemos”, respondeu Cartola ao repórter, cujo nome se perdeu, com justiça, na História.


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