RIO - Alguma coisa acontece no coração da escritora Natércia Pontes quando ela cruza a Rua Santa Clara com a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Ela não sabe muito bem o que é, mas começou a notar a sensação na época em que se mudou de Fortaleza para o Rio, para onde veio estudar, em 2004. Do seu Ceará introspectivo, ela foi dar direto em Copacabana, onde o mundo parece estar todo comprimido numa cartelinha de amostra grátis. Ficou encantada. Bastava ir a algum salão de beleza, banco ou supermercado para voltar com um conto pronto. Era só chegar em casa e escrever. Quem já morou em Copacabana sabe: é impossível ir ao Mundial da Rua Siqueira Campos para comprar dois pacotes de açúcar, por exemplo, e voltar sem uma história para contar. É aposentado disputando a fila de prioridade com travesti carregando bebê, Elke Maravilha escolhendo pimentão, turista muçulmano procurando a seção de filtro solar...
Foi assim quando, certa vez, estava com um amigo numa loja de instrumentos musicais, na altura da Praça Serzedelo Correia, e adentrou o estabelecimento uma senhora de óculos Ambervision, pochete e tênis Bamba. Como se fosse algo muito natural, ela começou a dedilhar os acordes de “Carruagens de fogo” num teclado exposto no estabelecimento (aquela do tã-nã-nã-nã-nã-nã que é a trilha de todas as maratonas de corrida). A cena virou o conto “O triste fim da senhora Pochete e tênis Bamba”, que integra o livro “Copacabana Dreams”, a ser lançado pela CosacNaify na quinta-feira, só com histórias do período em que foi tomada pela aura surreal de um dos bairros mais famosos do Brasil.
— O dia que entendi Copacabana, ou melhor, que Copacabana brotou em mim, foi quando abri a janela do apartamento e vi lá embaixo um cara levando um poodle cor-de-rosa para passear. O cachorrinho fez cocô e ele fingiu que não viu. Eu perguntei, gritando, da janela: “Ei, você não vai limpar não?”. Ele respondeu: “Não gostou? Vem cá e limpa você!” — diverte-se Natércia, que desde 2007 vive em São Paulo. — É uma dinâmica social totalmente diferente do Ceará, um cenário muito rico. É aconchegante e assustador ao mesmo tempo, tem um clima de casa de vó louca, Rivotril, bueiro explodindo, gente na rua de toalha na cabeça. Fiquei encantada quando cheguei. À noite, era só escrever o que eu via de dia.
O clima de encantamento fica evidente nos contos. O narrador passeia de carro pela Galeria Menescal, come o próprio coração num conjugadão da Avenida Princesa Isabel, emula a Kátia Flávia de Fausto Fawcett num galope à beira-mar, toma chuva de ar-condicionado na Barata Ribeiro. Evoca uma conversa imaginária entre as estátuas do tenente Siqueira Campos e a do poeta Carlos Drummond de Andrade (que lhe reclama uma baita ressaca). O conto “Manequins sem cabeça” atira numa frase: “Felizes posam sem cabeças, os seus biquínis: não pensam em nada, em ninguém, nem mesmo em para onde ir, e em para quem, depois que o sol se for”.
Apesar de ser da praia (no caso, da Praia de Iracema, em Fortaleza), Natércia escreve pouquíssimo sobre a Praia de Copacabana.
— Não foi intencional. Eu escrevia tudo o que via e vivia nesses três anos que morei em Copacabana. Quando vi, achei que tinha um livro pronto. Mandei para algumas editoras e nunca tive resposta. Até que um dia recebi um telefonema da Cosac, e eles até acharam bacana que as narrativas não fossem tão praianas — comenta Natércia, que na noite anterior tinha encarado seis horas num busão São Paulo-Rio para visitar a tia Neuma, que mora, claro, em Copacabana, e também usa pochete (com um chaveiro de ursinho de pelúcia colorido pendurado para fora, conta a sobrinha, detalhista).
Mas nem tudo no livro é deslumbre com o teatro vivo do bairro. A certa altura, Natércia e seus narradores começam a se assustar com tanta decadência. É quando começam as descrições mais descarnadas: uma mendiga que dá de mamar a uma boneca de plástico. Os médicos que fiam receitas de antidepressivos em consultórios mofados. O encontro com a morte nas esquinas.
— Copacabana é uma fatia bem definida da condição miserável humana. Você vai do enternecimento ao horror: tinha um self-service que eu frequentava, não sei se ainda existe (sim, existe), chamado “Kitutes da Deusa”, onde ia todo dia o ator Louzadinha, sozinho, e já muito velhinho. Eu pensava: amanhã ele não vem. E ele ia. E no outro também. Até que um dia ele não foi mais — conta Natércia, lembrando que o ator morreu em 2008 e faria 100 anos este ano.
Aos 32 anos, a escritora começou publicando contos em sites como Cronópios e no jornal “O Povo”. Em 2004, publicou o livro independente “Az mulerez”. Natércia saiu de Fortaleza aos 23 para fazer a terceira faculdade no Rio — já tinha começado Publicidade e Letras em Fortaleza, mas acabou optando por cursar Rádio e TV. Depois de morar um tempo em Botafogo, foi parar num quarto e sala na Rua Anita Garibaldi. Mas a falta de trabalho a empurrou para São Paulo, onde hoje faz roteiros para TV e preparação de textos.
— Ir para São Paulo foi uma volta torta para o Ceará. Toda minha geração saiu de Fortaleza e está em São Paulo. Os músicos do Cidadão Instigado (que prometeram tocar na festa de lançamento do livro, depois de quase dois anos sem fazer shows no Rio), o designer Renan Costalima, os artistas Yuri Firmeza e Vitor Cesar — lista ela, que, volta e meia, vem visitar a tia Neuma da pochete, além dos amigos que deixou aqui, como a cantora Letícia Novaes, do duo Letuce, que lhe mandou por e-mail a epígrafe que abre o livro, a letra da música “Joia”, de Caetano Veloso (“Copacabana, Copacabana/ Louca total e completamente louca/ A menina muito contente/ Toca Coca-Cola na boca/ Um momento de puro amor/De puro amor”).
— Todo mundo deveria morar um pouco em Copacabana — atesta Natércia, que só fez um pedido ao posar para as fotos da reportagem: que fosse na loja das Perucas Lady, tá?