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Fim de Semana do Livro no Porto reúne manifestações cariocas na região em que a cidade nasceu

RIO — Em vez de mesas de debates, escritores conversam sem mediador, papo livre, num botequim. No lugar de coquetéis de editoras, iguarias como paçoca de colher e coxinha de calabresa nos tabuleiros de quituteiras que carregam a herança mítica de Tia Ciata. Entre os assuntos em pauta, facínoras que marcaram seu nome nas páginas policiais cariocas, bicheiros, a feijoada. Entre uma conversa e outra, um campeonato de porrinha. Sim, é o FIM — e é ótimo que seja. As três letras são o apelido carinhoso dado ao Fim de Semana do Livro no Porto, realizado neste sábado e neste domingo na Zona Portuária, entre o Largo da Prainha, a Pedra do Sal e o Morro da Conceição. O endereço não é um acaso — afinal, os sobrados da região, “as pedras pisadas do cais” (como escreveu Aldir Blanc), os batuques que ecoam por ali (região onde o samba nasceu e onde hoje se mostra vivo, por exemplo, nos Escravos da Mauá) afirmam, em sua história e em seu presente, a visão de cidade defendida pelo evento. Um espaço de encontro, de cruzamento, de impureza, de riqueza, do novo, do ancestral. Um porto, enfim.

— Se o Rio é essa diversidade de cores, sons e palavras, é resultado das trocas que só existiram por conta do vai e vem interminável dos navios. Esse Rio de Janeiro nasceu pelo porto. O que há sob o chão da Região Portuária é a memória de todos nós. E essa memória é a certidão de nascimento da cidade. Não há lugar melhor para uma festa literária que celebra a nossa cidade — defende Raphael Vidal, idealizador do evento, que chega neste ano à sua segunda edição. — O clima é de botequim. E é nos botequins que a cidade fala. Nós enaltecemos os escritores alemães e não achamos importante falar sobre os compositores da Velha Guarda do Estácio. Todos os convidados do FIM são escritores. E escritores que falam de carnaval, esquinas, capoeira e cachaça. Isso é tão importante para a literatura e a cidade quanto os que falam de realidades fantásticas.

A celebração da cidade no FIM se dá em diferentes frentes. Ela está nas conversas com os convidados (25 no total, entre eles o caricaturista Cássio Loredano, a carnavalesca Rosa Magalhães, a filóloga Rachel Valença e os escritores Alberto Mussa, Luis Pimentel e Fábio Fabato), cinco por dia, das 10h às 18h. Nas barracas das quituteiras. Nos ateliês de artistas abertos à visitação pelo Morro da Conceição. Na programação musical e teatral (que inclui jazz, choro e o espetáculo “Cantos negreiros”, união da literatura de Marcelino Freire com a música da cantora Fabiana Cozza). Nas intervenções artísticas pela rua (como a de Adrianna Eu, que “costurou” casas e sobrados, ligando-os com tecidos e indicando um caminho de exploração das ruas). Na ocupação do Largo da Prainha pela programação infantil, que segue o espírito da adulta.

— Pra vivenciar a experiência do Fim de Semana do Livro no Porto é preciso andar pelas ruas da Região Portuária. É o estar no chão que une toda a programação — resume Vidal.

O conceito da festa foi desenvolvido também pelo historiador Luiz Antônio Simas. Curador? Ele recusa veementemente o termo. Acha mais adequado “cambono”, a figura que auxilia o trabalho das entidades no terreiro. Os paralelos com a lógica do culto afro-brasileiro, aliás, atravessam a percepção de Simas e Vidal sobre o FIM.

— As mesas foram montadas a partir da percepção da cidade como um terreiro. Nela, ressoam os tambores das nossas formas de nascer, morrer, festejar, comer, beber, dançar, brigar, amar, matar, louvar os ancestrais e inventar a vida. Tudo isso, diga-se, frequentemente ocorre à margem das formalidades — explica Simas. — Buscamos convidados que tivessem reflexões pertinentes e trabalhos vinculados a esse recorte cultural da cidade e da sua gente, longe da apologia gratuita do carioquismo e da demonização dos nossos modos.

O escritor Alberto Mussa, um dos convidados, destaca o quanto a região da Pequena África está impressa no DNA do Rio contemporâneo:

— O Rio, como as demais cidades míticas, existe desde sempre e foi fundado inúmeras vezes. Na Ilha do Governador, na Urca, no Morro do Castelo, na Rua do Ouvidor, na Praça Quinze, em Madureira, em muitos lugares. Mas a última fundação, a que corresponde à imagem atual que temos da cidade, aconteceu nessa área: Pedra do Sal, Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Prainha. Talvez devêssemos incluir o Estácio. É aí que se dá o Grande Encontro, onde surge a cara do Rio moderno. Não é esse Rio artificial, do imaginário das elites, que acham que ao norte do túnel Rebouças não existe nada. É o Rio que produziu as maiores criações artísticas brasileiras do século XX: o samba urbano e o desfile das escolas de samba. Foi também lá que se deu a consolidação e evolução do mito do malandro; a nacionalização da umbanda; a invenção do jogo de ronda.


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