RIO - Coerente com o trajeto e a história de Gilberto Gil, o projeto do álbum “Gilbertos samba” tem algo de espinhoso. Afinal, João Gilberto é insuperável no que criou com sua voz e violão, sintetizando a bossa nova, um estilo no qual a perfeição é uma meta. Daí o disco recentemente lançado pela Sony Music ter resultados híbridos, com o discípulo assumido usando tanto da reverência ao banquinho e o violão quanto de novos ingredientes e instrumentos a princípio estranhos. Ousadias, mas que fazem sentido para quem pretende avançar num terreno no qual João foi e continua sendo a referência maior. O que acrescentar a interpretações que naquele formato parecem insuperáveis?
O caminho escolhido parece ter sido o de alternar momentos de beleza e intencional estranheza – no segundo caso, o principal exemplo é a versão de “Desafinado”, que se revelou ainda mais provocativa no palco, com o tema de Tom Jobim e Newton Mendonça agredido pelo som de uma sirene. Como na letra do samba “Meio-de-campo” (uma das composições de Gil incluídas no roteiro do show, mas que não entrou no CD e nunca foi gravada por João), ele está “desprezando a perfeição”. Mas, se o disco tem um quê de travado, retrancado, ao vivo tudo flui melhor, cresce e faz mais sentido. Foi o que se viu na estreia da temporada, nesta sexta-feira, em show para convidados no qual o Theatro Net Rio também comemorava seus primeiros dois anos de vida.
Acompanhado de Bem Gil (violões, guitarra, percussão, flauta e MPC), Domenico Lancellotti (bateria, percussão e MPC) e Mestrinho (sanfona, percussão e MPC), o passeio de Gil pela obra do mestre supremo de sua geração ganhou mais vida e organicidade. A voz e o violão continuam no centro, mas a sonoridade é de um grupo no qual se destaca o jovem acordeonista, num elo com o universo musical que marcou a infância e adolescência pré-bossa do baiano tropicalista.
Além das 12 faixas de “Gilbertos samba”, entraram no roteiro mais nove canções, das quais apenas duas também foram gravadas por João Gilberto, “Rosa Morena” (Dorival Caymmi) e “Um abraço no Bonfá” (o tema instrumental de João Gilberto que Gil letrou mas não teve autorização para incluir no disco e que agora toca e canta antes da sua instrumental “Um abraço no João”). As outras sete poderiam, numa leitura mais estreita, fugir à proposta original, mas completam e avançam no conceito. Do clássico “Chiclete com banana” (lançado por Jackson Pandeiro, aquele que junto a Luiz Gonzaga foi um dos ídolos pré-bossa nova do jovem Gil) às seis composições próprias: a já citada “Meio-de-campo” (que ele compôs em 1973 em homenagem ao craque rebelde Afonsinho), sambas conhecidos (“Ladeira da Preguiça” e “Aquele abraço”, esta fechando o bis) ou esquecidos (“Mancada”, que fez para Jair Rodrigues e depois também gravou em seu primeiro LP, em 1967), a recente “Máquina de ritmo” e uma composição nova sobre o Rio de Janeiro.
Não era uma partida fácil, mas, aperfeiçoando o imperfeito, Gil e seus músicos conseguiram seu objetivo.
Cotação: Bom