RIO - Se a vida profissional de Hugo Kerth fosse um daqueles testemunhos de transformação religiosa, ele teria na ponta da língua o dia do fundo do poço. Foi quando, depois de algumas audições frustradas, ele ligou para a mãe em Teresópolis e pediu seu velho quarto de volta.
— Estava desmotivado, com pouca grana, a ponto de desistir — lembra o ator de 22 anos, que tinha se mudado para o Rio quatro anos antes para cursar Artes Cênicas.
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Sua sorte é que, como todo relato do gênero, este também tem um ponto de virada. Alguns meses depois, estreava o musical “The book of mormon”, e o teatro da Unirio logo ficaria pequeno para a fila na porta. Toda noite, caras anônimas e figurões da TV disputavam não só as cadeiras como cada centímetro de chão da plateia para ver uma vibrante trupe de jovens estudantes cantar e dançar. No centro do palco, ele era o protagonista de um fenômeno.
A peça que manteve o endereço de correspondência dele na Tijuca, onde mora com a avó materna, continua a reverberar. Depois de meses de casa cheia, iniciados em dezembro de 2013, volta para mais quatro apresentações de terça a sexta-feira desta semana no Teatro Odylo Costa Filho, na Uerj. E, na vida do ator, a versão brasileira do sucesso da Broadway, assinado pelos criadores de “South Park”, também não parou de atrair boas novas. A avalanche começou com uma crítica elogiosa de Barbara Heliodora, uma de suas últimas publicadas no GLOBO. Depois vieram os tapinhas nas costas de diretores e atores famosos nas coxias, a assinatura de contrato com uma agente e, agora, negociações com produtores de televisão.
— Eu seria um burro se não aproveitasse isso tudo o que aconteceu. Ainda bem que minha mãe me mandou ficar — diz.
Tanto burburinho só aconteceu graças a uma particularidade da legislação brasileira de direitos autorais, que isenta de autorização ou pagamento de copyright encenações em ambientes universitários sem cobrança de ingresso. Foi o que permitiu ao professor Rubens Lima Jr., do Centro de Artes e Letras da Unirio, criar um projeto de adaptações de musicais consagrados, como “Tommy” e “Spamalot” (vide entrevista na coluna Dois Cafés e a Conta, na página 6). Todas feitos por formandos, quase sempre em curtas temporadas, no teatro da faculdade, e com parcos recursos. Foi só em 2012 que a Fundação Cesgranrio entrou com um patrocínio que elevou o nível das produções. “The book of mormon” é a primeira delas a estender seus tentáculos para fora do campus da Urca. “Um milagre de esforço”, escreveu Barbara.
Não foi um efeito pirotécnico que fez uma média de cem pessoas por noite ficarem de fora do teatro, sem conseguir senhas.
— O elenco faz aquilo com gás, com alma. Esqueci que estava num teatro desconfortável, sem ar-condicionado, e me deixei levar por três horas. Lembrou muito o início da minha carreira. Chorei várias vezes — conta o diretor Charles Möeller, atual rei dos musicais no Brasil e uma das caras ilustres a passar pela plateia.
Hugo vive Elder Price, missionário mórmon que chega a uma aldeia paupérrima e violenta em Uganda para converter os habitantes. Ao lado de Leo Bahia, o inseguro Elder Cunningham, o ator precisa dar conta de uma metralhadora giratória de piadas politicamente incorretas sobre religião, raça e sexualidade e ainda encarar dois solos difíceis.
— Costumo dizer que o teatro musical é um esporte de elite. O Hugo é certamente um atleta de elite — elogia Charles.
Se é assim, foram anos de condicionamento. Aos 10 anos, Hugo entrou para um curso de teatro em Teresópolis, levado pela mãe, que percebeu sua falta de jeito para os esportes.
— Eu me lembro até hoje do dia, 22 de maio de 2003 — relembra, sorrindo.
Foram 40 montagens, que circulavam por cidades da região serrana do Rio.
— Éramos como um circo, levando o cenário no carro do diretor. Para mim, que sou filho único e sempre fui muito sozinho, foi como encontrar uma famíla — conta.
A paixão pelo palco fez com que ele deixasse sua cidade para ingressar na faculdade de artes cênicas no Rio. Em vez do desbunde que a idade e a mudança para a capital podiam incitar, estava vidrado em outra viagem, desde que tinha visto “A noviça rebelde” ao lado da avó paterna e suas amigas da van:
— Comecei a pesquisar quem eram os atores e diretores daquelas montagens.
A obsessão o levou a um curso de teatro musical onde conheceu Mirna Rubim, a madre superiora da peça, que tinha uma escola de preparação vocal em Copacabana e o convocou para trabalhar como secretário lá. Quando não estava desmarcando aulas alheias, ele aprendia canto. Em pouco tempo, tinha entrado também para o quadro de professores.
— Para alguém da idade dele, ele passava a ideia de ter mais experiência do que os outros — conta Lima Jr., que chamou Hugo para participar de “Spamalot”.
Impressionado com os dotes do ator, ele também o convidou para um projeto que tocava na pérgula da Casa Julieta de Serpa, no Flamengo. O grupo animava os chás da tarde de senhorinhas com músicas natalinas, sucessos de Frank Sinatra e marchinhas de carnaval. Dividido entre o canto e a interpretação, Hugo foi abocanhando o que via pela frente. Uns lembram dele cantando Lady Gaga em boate com figurino de Peter Pan. Outros, de uma peça com canções aleatórias e dramaturgia idem.
— Em 2011, fiz um espetáculo muito ruim no Teatro Ipanema, daqueles que a gente reza para ninguém ver. A Alessandra Maestrini era aluna da Mirna e foi na estreia. Ainda bem que ela voltou a me ver agora para superar aquilo — comemora.
Quando “The book of mormon” surgiu no cenário, ainda não parecia a salvação da lavoura. Foram sete meses de ensaios e um adiamento de data. Nesse intervalo, desanimado, foi que Hugo pegou o telefone para pedir arrego à mãe. Inseguro, o elenco já não sabia mais se as piadas na linha do humor americano iconoclasta funcionariam na tradução brasileira.
— Para a gente, aquilo já tinha perdido toda a graça. Até que veio a estreia e na primeira delas todo mundo começou a rir — diz.
Na terceira semana em cartaz, o público começava a voltar para casa sem conseguir entrar.
— Estou chocado até agora com a repercussão da peça. Tivemos reações incríveis, como a do Tiago Abravanel, que foi falar com a gente e começou a chorar — conta o ator, que na última semana em cartaz estava tomando cortisona por conta da temporada exaustiva.
Agora, é tempo de fazer planos. Quer tentar a sorte na TV e fazer uma pós no exterior.
— Falta muita pesquisa de voz para teatro no Brasil — lamenta ele, que nunca saiu do país e só conhece a Broadway traduzida para o português.