RIO - As mesmas perguntas que guiam um bom texto jornalístico — quem? quando? onde? como? por quê? — servem também para levar o diretor alemão Ralf Schmerberg numa viagem quase mística pelos sinuosos caminhos da criação musical no recém-lançado documentário “What difference does it make?” (“Que diferença isso faz?”). Produzido em meio às celebrações dos 15 anos da Red Bull Music Academy — uma experiência única no meio, que reúne artistas de diferentes gêneros, gerações e status, em eventos realizados anualmente, cada vez em uma cidade diferente —, o filme, que pode ser visto on-line, registra uma das etapas desse circuito, realizada em Nova York no ano passado. Com uma série de entrevistas, encontros e debates, a câmera de Schmerberg revela momentos de reflexão, raramente tornados públicos, de Brian Eno, Debbie Harry, James Murphy (LCD Soundsystem), Nile Rodgers, Erikah Badu, Phillip Glass e Giorgio Moroder, entre outros.
O celebrado produtor italiano de disco, renascido graças à sua participação no álbum “Random access memories”, do Daft Punk, por exemplo, aparece numa das cenas do filme, confessando o nervosismo antes de uma apresentação, como DJ, num dos eventos paralelos à academia. “Parece que há muita gente querendo me ver. Espero não sentir a pressão. Mas vou beber duas taças de vinho e fazer o que tiver vontade”, diz Moroder, de 73 anos. Já a ex-cantora do Blondie dá uma inusitada dica aos seus seguidores durante uma palestra: “Não se esqueçam de tirar férias. Trabalhamos por sete anos sem parar, e isso traz uma pressão intensa. Parar é importante”, afirma Debbie. Erykah Badu, por sua vez, fica visivelmente desconcertada quando alguém, durante uma palestra, revela que a música da estrela do soul mudou sua vida. “Acho incrível ter causado isso, já que meu trabalho sempre seguiu um modelo egoísta de produção”, conta ela. E Eno, ao mesmo tempo em que revela a forma quase mediúnica como compõe (“A música toma conta de mim”), faz a pergunta que gerou o título do filme, quase uma sessão de análise das estrelas: “Por que estou fazendo isso? Que diferença isso faz para o mundo?”
— Queria olhar a música de forma humana, e não fazer um filme para especialistas. A ideia era achar a linguagem da música e tentar entender como esses artistas se conectam com seu trabalho — conta Schmerberg. — No final, consegui que eles se abrissem para as câmeras. E ri e me emocionei junto com seus depoimentos.
Os festejos em torno do Red Bull Music Academy — que passou por São Paulo em 2002 e cuja próxima edição é em Tóquio, em outubro — não se resumem a “What difference does it make?” e incluem também “For the record — Conversations with people who have shaped the way we listen to music”, um parrudo livro de 400 bem desenhadas páginas com variações desse confessionário musical. Editado por Many Ameri e Torsten Schmidt — os idealizadores da Red Bull Music Academy —, o “coffee table book” reproduz o bate-papo entre artistas e grupos como Mulatu Astatke (o mestre do jazz etíope) e Buraka Som Sistema (o grupo português de kuduro); e Lee Perry (o gênio do reggae psicodélico) e Adrian Sherwood (o veterano produtor britânico), abordando os meandros do processo criativo.
— Sempre estivemos interessados em documentar esses encontros, já que às vezes é difícil explicar tudo o que envolve a academia — explica Ameri. — E, mesmo com todas as inovações tecnológicas, o livro é um formato clássico e adorável de imortalizar isso. Nele, os próprios artistas se explicam. É como se levassem as discussões para o sofá do leitor.
Início num galpão em Berlim
Em sintonia com filme e livro, Ameri também aproveita a data para refletir sobre o evento que ajudou a criar, inicialmente realizado em um galpão em Berlim e que evoluiu de um encontro entre DJs e produtores de sons alternativos para se transformar em um grande simpósio musical, que inclui também uma revista e uma rádio on-line. O cofundador do evento também responde pela curadoria de palcos em festivais como Sónar, na Espanha, e Montreux, na Suíça.
— Desde o começo, nossa ideia era reunir artistas de diferentes origens, fosse Gilberto Gil ou Flying Lotus, para que refletissem sobre seu processo criativo e ajudassem a inspirar as novas gerações. Era uma época bem diferente, quando a informação não estava tão acessível como agora, graças à internet, e havia uma demanda enorme por esse tipo de conhecimento — lembra ele. — Mesmo hoje, ainda é difícil reunir talentos assim, sem um compromisso comercial e em um nível mais humano, como nesses encontros, em que vale mesmo é o olho no olho. Por isso, acho que ainda temos um longo caminho pela frente, já que o interesse pela criação musical não se esgota nunca. Até porque o acesso a ferramentas de produção se democratizou incrivelmente. Quase todo mundo pode fazer música em casa hoje. Mas a inspiração vai sempre nos assombrar e encantar.