RIO - Violência crua, assassina, de vingança justa, ódio redentor: “Dá neles, Damião!/ E devolve o hematoma/ Bate mesmo, até o coma/ Que essa raiva, passa nunca, não”. Mais que isso, um ódio que encontra a solidariedade em quem canta — e a busca em quem ouve: “Bate até cansar e quando cansar/ Me chama”. “Damião” (dedicada a Damião Ximenes Lopes, morto por espancamento em 1999 na Casa de Repouso Guararapes, no Ceará, onde estava internado) sintetiza — mãos dadas com as guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos e o sax de Thiago França — de onde vem a voz de Juçara Marçal em “Encarnado”, CD de estreia solo da cantora do Metá Metá, recém-lançado para download gratuito em www.jucara marcal.com. Uma voz que não teme encarar de frente a morte (e tudo o que ela traz de paz e terror, de luz e escuridão), tema central do álbum. E, sobretudo, não teme se sujar no caminho.
A morte — a vingança, a dor, a raiva — atravessa o álbum em faixas como “Ciranda do aborto” (“Passa na carne a navalha/ Se banha de sangue/ Sorri ao chorar”), “A velha da capa preta” (“E a morte anda no mundo/ Vestindo mortalha escura”), “Não tenha ódio no verão” (“O ódio pega como planta que se rega/ Mas no peito que navega/ A pessoa fica cega”), “João Carranca” (“E a velha enciumada/ Retalhou o rosto do rapaz”) e “Velho amarelo” (“Quero morrer num dia breve/ Quero morrer num dia azul/ Quero morrer na América do Sul”). O assunto, porém, é ponto de chegada do álbum, não de partida.
— O que me moveu foi estar muito fissurada no trabalho dos meninos do Passo Torto (Kiko e Rodrigo, que integram o Passo Torto ao lado de Romulo Fróes e Marcelo Cabral), aqueles contrapontos nas guitarras, a busca de timbres — explica Juçara. — Eu já curtia o som pelos shows deles, mas a coisa ficou mais clara quando trabalhamos os três juntos. Primeiro, na preparação de uma homenagem ao (compositor) Geraldo Filme, para a qual pensamos os arranjos juntos. Depois, no show de relançamento do disco do Plínio Marcos (“Em prosa e samba com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro”).
“Não fazia sentido cantar ‘eu te amo’”
Em “Encarnado”, Kiko (guitarra) e Rodrigo (guitarra e cavaquinho) têm a companhia de Thomas Rohrer (rabeca), com quem a cantora já tinha tocado no grupo A Barca. Thiago França (sax e pocket piano) participa de algumas faixas. Foi a sonoridade (apoiada sobretudo na tríade Juçara-Kiko-Rodrigo), portanto, que deu o chão para que a temática densa se instaurasse.
— Sobre essa sonoridade, não fazia sentido cantar “eu te amo, meu amor" — brinca Juçara. — A canção do Itamar (Assumpção, “E o Quico?”), por exemplo. Há várias do Itamar que quero cantar, mas para essa formação, essa tinha mais a ver. A coisa da assombração, do assustador, o cara atormentado, esquizofrênico. São as coisas demasiamadamente humanas.
Juçara defende que há beleza na sujeira dos arranjos e dos versos duros — a beleza da morte suja, a sujeira da morte bela:
— A nossa busca pela beleza parte de um lado mais cru. Tirar o cosmético que domina o mundo hoje. Quando você busca a sujeira para chegar a algo, parece que traduz uma beleza mais próxima do humano. Sempre acho que vivenciar dessa forma essas canções tão difíceis, tão cruéis te faz saborear melhor o outro lado. Não é renegar o outro lado, mas fazê-lo mais evidente.
A mesma lógica está presente no canto de Juçara — que atravessou as pesquisas de cultura popular do grupo A Barca, as harmonias vocais do Vésper, a investigação das tradições afro-brasileiras em discos como “Padê” e no projeto Metá Metá, e participou de álbuns de artistas como Rodrigo Campos, Criolo e Emicida. Em “Encarnado”, a técnica não a aprisiona nos caminhos da beleza mais clara. Em “Canção pra ninar Oxum” e “Presente de casamento”, por exemplo, ela atua num registro agudo que testa os limites de sua voz, como nos berros de “Não tenha ódio no verão”.
— Às vezes gosto de usar a voz quebrando de verdade. Em “Canção pra ninar Oxum” escolhi um tom pra falhar a voz mesmo. Que seja assim, se isso tem a ver com o que estou cantando. Tem a ver com o que a gente defende do ruído, da aresta — diz Juçara.
A gente a que Juçara se refere é um núcleo paulistano de “samba com arestas” formado basicamente pelos integrantes do Metá Metá e do Passo Torto, em trabalhos solo ou em projetos coletivos. Eles estão presentes como compositores em “Encarnado” — há canções de Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Thiago França e Douglas Germano (do Duo Moviola, com Kiko). Outros colegas dessa geração, como Siba e Gui Amabis, também aparecem como autores. Itamar e Tom Zé (“Não tenha ódio no verão”, pinçada de seu último CD, “Tropicália lixo lógico”) aparecem como referências , indicando o caminho de beleza mais dionisíaca que apolínea escolhido por Juçara.
A falta de frequências graves no disco tem o mesmo efeito — de arrebatar pela estranheza, quase incômodo.
— Pensamos nisso, mas foi uma questão que resolvi assumir — explica a cantora. — Escolhi não botar um baixo, que faria o som ter todas as matizes, mas não retrataria o que buscávamos.
“Encarnado”, o nome, foi extraído de um verso do disco: “Sua boca, seu dente/ E o encarnado/ Que corta e desmente/ Meu samba armado”. À ideia da violência da estrofe (dente, corte) e à proposta da definição de um gênero musical próprio (“samba armado”), se juntam mil outros conceitos no título:
— É o vermelho do sangue, é o espírito que encarna, a assombração, o que não é mais vivo, o que vem do transe, o obsessivo. Até encarnar de tirar sarro. O encarnado é morte mas também é vida. Quando você enfrenta a ideia da morte, é para se sentir vivo.