SÃO PAULO - Durante anos seguidos, Regina Casé divulgou a cultura popular dos subúrbios e das periferias, e seus personagens, a bordo de programas de TV como e “Central da periferia” e “Esquenta” (de volta à grade da TV Globo em abril) — atrações, aliás, que ajudaram a mantê-la afastada das atividades de atriz. Quando aceitou o convite da diretora Anna Muylaert para usar o uniforme de Val, a empregada em crise de valores do drama “Que horas ela volta?”, cujas filmagens foram concluídas na semana passada, em São Paulo, não foi preciso recorrer a pesquisas ou qualquer tipo de laboratório para compor a personagem.
— A gente fica até meio doente quando acumula muita informação sobre uma realidade mas não tem onde mostrá-la. Na TV, a gente mostra música, roupa, comida, mas não as emoções, os sentimentos, o olhar dessas pessoas com as quais eu convivo tão perto, mas que eu percebo que ninguém vê — analisa Regina, longe dos cinemas desde “Eu tu eles” (2000), de Andrucha Waddington. — Acho que por isso estou virando atriz de novo, porque um filme como este precisa de alguém que saiba onde uma empregada mora, como é a casa dela, como ela se comporta com as amigas, o que veste, onde ficam os forrós, os pagodes e os bailes funks que gosta de frequentar.
Filha critica postura da mãe
“Que horas ela volta?” descreve a trajetória de Val, nordestina que deixou a filha pequena, Jéssica, com a avó no interior de Pernambuco para ganhar a vida — e sustentar a menina — como doméstica na capital paulista. Treze anos depois, agora uma jovem em busca de um curso superior de qualidade, Jéssica (interpretada por Camila Márdila) vai ao encontro da mãe e a confronta por sua subserviência em relação aos empregadores, sempre seguindo, com a maior naturalidade, as rígidas regras de convivência com a família. É um filme pós-PEC das Domésticas, que regulamentou a profissão e pôs em xeque a tradicional relação entre patrões e empregados domésticos.
— A Regina gosta de dizer que a Val é um mico-leão dourado das domésticas, porque ela é um exemplar em extinção entre as serviçais, acredita no sistema mais até do que os próprios patrões. Mas a filha dela, a Jéssica, não, e a presença dela vem quebrar isso — explica Anna, durante um dos intervalos das filmagens, em uma mansão do Morumbi. — Sempre pensei na Regina para o papel. Admiro muito o trabalho dela no “Eu tu eles”, e sei que ela gosta muitas das empregadas. Também levei em consideração a aparência: a Regina é uma estrela com cara de povo, o que é raro.
Não é exatamente a primeira vez em que Regina, com extenso currículo no teatro, na TV e no cinema, interpreta uma mulher de origem humilde. A Tina Pepper da novela “Cambalacho” (1986) era uma mulher simples do subúrbio de São Paulo, por exemplo. Em “Eu tu eles”, a atriz foi Darlene, uma cortadora de cana que ainda encontrava tempo para os três maridos que moravam com ela. Em dezembro passado, Regina terminou de filmar “Made in China”, comédia dirigida pelo marido, Estevão Ciavatta, na qual vive Francis, uma vendedora de uma loja de quinquilharias da Saara, no Centro do Rio, e que mora no Morro da Providência.
— “Que horas ela volta?”, na verdade, está sublinhando essa bagagem que venho acumulando em meus trabalhos, de meu contato com uma população que só agora está tendo visibilidade na TV e no cinema. Acho que eu trouxe para a ficção uma interpretação mais autoral do que vivi nesses lugares, com essas pessoas do povo — analisa a atriz de 56 anos. — Neste filme, a protagonista é uma empregada, o que é incomum. Não havia dramaturgia, na TV ou no cinema, que abrigasse um personagem como esse. Mas os temas relacionados a eles se tornaram tão urgentes que eles estão assumindo o centro das tramas.
A simplória e ingênua Val é uma mulher que se anulou para dar um futuro melhor para a filha. Impossibilitada de manter contato com Jéssica, ela transfere toda a afetividade materna para o filho da patroa, repetindo um modelo-padrão que existe há gerações.
— A Val faz parte de uma geração em extinção. Os filhos dos novos empregados domésticos estão passando a ter acesso a cursos superiores e entrando no mercado de trabalho formal e especializado. Ou seja, estão parando de perpetuar esse modelo — avalia Regina.