RIO - Laura Cardoso entra em cena e, antes mesmo de sua primeira fala, é ovacionada pela plateia de convidados e jornalistas. O público que lota a pré-estreia do teatro do Shopping Frei Caneca, em São Paulo, aplaude a atriz de 86 anos de vida e 71 de carreira pelo conjunto de sua obra — só depois confere sua nova empreitada.
Dirigida e escrita por Odilon Wagner, “A última sessão”, que estreou na quinta-feira passada, apresenta um elenco de veteranos, incluindo Nívea Maria, Etty Fraser, Sonia Guedes, Sylvio Zilber, Miriam Mehler, Gésio Amadeu, Gabriela Rabelo e Yunes Chami. A comédia trata do amor na maturidade, apresentando uma visão que traduz a vivacidade e a alegria de Laura.
— A história é muito interessante: um grupo de pessoas da terceira idade, que se conhece há muito tempo. De repente, eles não têm medo de expor mágoas, problemas, dores, raivas — conta Laura, lembrando ainda a alegria de trabalhar com um elenco de velhos amigos. — Todos aqui se conhecem. Tanto de teatro, quanto de TV.
“Trabalhando loucamente”
Odilon entregou o texto para a atriz quando os dois estavam hospedados num hotel do Rio, durante as gravações de uma novela. Ele deu a ela a liberdade de escolher o papel que queria interpretar. Laura elegeu Elvira, a mesma personagem que Odilon imaginara para ela.
— A geração dela não para, estão todos aí trabalhando loucamente, e a peça é um pouco sobre isso — diz o diretor-autor. — É sobre os valores da maturidade e a percepção de que hoje essas pessoas de 70, 80 anos estão entrando em universidades, começando vidas afetivas. Precisamos mudar o paradigma do entendimento do que é maturidade. Antigamente, nossos pais aos 50 anos eram velhos. Se portavam como velhos. Hoje, não é assim. Mas nossa cabeça ainda tem essa ideia de velhinho.
Para Laura, o texto de Odilon é um alerta aos mais jovens. A atriz conta que se irrita quando insistem para que se sente:
— Tem aquela coisa: “ai, você é velha, senta”. Gente, eu não quero sentar! Se quiser, eu peço. “A última sessão” é sobre vida na maturidade, amor na maturidade. As pessoas fazem galhofa, caçoam quando veem uma mulher ou um homem de mais idade com outra pessoa. Quem te faz velho são os outros. Tenho o direito de fazer o que quiser.
Turrona é a primeira palavra que o encenador Antunes Filho usa ao falar sobre o processo de criação de Laura em “Vereda da salvação”, texto de Jorge Andrade, como a personagem Dolor, em 1993. Para o diretor, o espetáculo está entre os grandes momentos de sua carreira, assim como “Plantão 21”, com texto de Sidney Kingsley, encenada em 1959, com Laura Cardoso como Mary McLeod.
— Ator tem que convencer. No tapa, se necessário. Não pode se deixar levar pelo papo do diretor. Ator obediente não é nada, é um serviçal. Laura não. Ela é fogo — lembra Antunes, que conheceu a atriz e seu marido, o ator, diretor, produtor e autor Fernando Baleroni (1922-1980) na antiga TV Tupi. — A Laura é uma extraordinária atriz que tem poucas chances de mostrar seu melhor na TV. É muito inteligente e desconfiada. “Vereda da salvação” foi uma das coisas mais lindas que fiz na minha vida. Meu trabalho depende muito dos atores.
Para o cineasta Walter Salles, que a dirigiu, com Daniela Thomas, em “Terra estrangeira” (1996), trabalhar com Laura foi “uma experiência inesquecível”.
— Além de ótima atriz, ela é daquelas pessoas generosas que pensam no filme como um todo, trazem sugestões, ajudam quem está começando. O filme foi feito em poucas semanas e tínhamos que avançar rapidamente. Muitos dos planos de Laura foram feitos em apenas uma ou duas tomadas, tal a precisão e a entrega dela. O filme não seria o mesmo sem a Laura.
Paulistana do Bixiga, filha de portugueses, a atriz começou a carreira aos 15 anos, na rádio Cosmos, em São Paulo. Aprendeu no rádio a flexionar a voz e a libertar sua imaginação. Sem preconceitos contra a TV, juntou-se aos pioneiros na Tupi, no início dos anos 1950.
— Quando começamos, a TV era uma coisa feita com as mãos, quase um artesanato. Naquele tempo, se você errasse, tinha obrigação de consertar e seguir adiante. O começo nos deu jogo de cintura, rapidez de raciocínio. Havia uma certa recusa do pessoal de teatro. Eles achavam que a TV era uma arte menor, o que nunca foi. Eu não tinha isso.
“Quero ser a melhor”
Mas Laura diz ser elitista. Escolhe trabalho primeiro pelo texto, depois pelo diretor e, finalmente, pelo elenco.
— Se essas três coisas me agradarem, aí eu aceito. Não quero competir. Quero ser a melhor. Às vezes você perde e é bom perder, faz parte do aprendizado. Mas eu entro na arena para ganhar. Se não ganho, fico muito p... — diz a atriz, completando com sua afiada autocrítica: — É uma vaidade meio burra. A gente precisa saber que erra, que cai. E eu erro muito.
O diretor Miguel Falabella, que costuma se ajoelhar diante de Laura sempre que a encontra, diz que ela é um dos pontos altos de seu currículo. Em “Veneza”, espetáculo de 2004 dirigido e adaptado por ele, a atriz interpretava “uma velha louca e cega”.
— A plateia ficava nas mãos dela. Ter Laura no elenco, seja na TV, no teatro ou no cinema, é um privilégio. Ela engrandece o nosso ofício — elogia.
A atriz enviuvou cedo, aos 53 anos. Mãe de duas filhas, tem também duas netas e um bisneto. Nunca se casou de novo.
— Será que é porque amei demais e esvaziou? Não sei. Amei quem eu quis, fui amada por quem eu quis. Então, está ótimo. O trabalho me preenche muito. O trabalho, a leitura, as pessoas com quem convivo — conta.
Autora da biografia “Laura Cardoso — Contadora de histórias”, da Coleção Aplauso, Julia Laks descreve Laura como uma pessoa simples e generosa, cuja vida pessoal está entrelaçada ao trabalho.
— Com mais de 70 anos de carreira, ela ainda fica nervosa numa estreia. O prazer de Laura em trabalhar e viver é evidente — descreve a escritora.
A atriz sonha trabalhar com os cineastas Pedro Almodóvar e Manoel de Oliveira. No teatro, quer encenar mais uma tragédia grega. Ela foi Eurídice na “Antígona” dirigida por Benjamin Cattan em 1966, com Aracy Balabanian como protagonista.
— Amo o que faço. Adoro representar em qualquer pedacinho de chão. Tudo para mim tem muito valor, é importante. Sou abençoada pelos deuses do teatro, porque sempre represento coisas boas, recebo convites sérios — diz, rosto limpo, sem maquiagem, antes de encarar a seção de fotos para O GLOBO.