RIO - Trinta anos se passaram desde que “Sargento Getúlio” (1983) transformou o (então estreante) cearense Hermano Penna em uma das maiores promessas do cinema brasileiro. Depois de viajar por 20 festivais internacionais, uma leva de 32 prêmios celebrizou a adaptação do romance homônimo lançado em 1971 pelo baiano João Ubaldo Ribeiro e que, até hoje, jamais saiu em DVD. Tudo começou por Locarno, na Suíça, em cuja mostra Penna ganhou um prêmio especial de direção, empatado com um cineasta negro americano estreante, um certo Spike Lee, laureado por “Joe’s Bed-Stuy Barbershop: We cut heads”. Ali foi o pontapé de uma carreira ascendente, que ao longo de três décadas jamais repetiu o mesmo feito. Mas ela agora esboça uma retomada, com um longa novo, já finalizado: “Aos ventos que virão”, com Rui Ricardo Dias (de “Lula, o filho do Brasil”). Sua ambientação é similar à do faroeste caboclo com Lima Duarte, que, nos anos 1980, conquistou cinco Kikitos em Gramado e fez História como um painel das sequelas do Estado Novo, ao ser lançado no fim da ditadura militar.
— É uma volta, 30 anos depois, da mesma missão que me moveu a fazer “Sargento Getúlio”: retratar uma mudança do Nordeste. E fiz o novo longa no mesmo estado, Sergipe, onde rodei com Lima Duarte a adaptação do romance de João Ubaldo. De novo, tem esse clima de western contemporâneo, de nordestern, com referências ao Cangaço — diz Penna, esperando conseguir com “Aos ventos que virão” uma vaga na seleção competitiva do Cine PE, de 26 de abril a 2 de maio, em Olinda.
É lá que Penna, hoje com 67 anos, gostaria de iniciar a carreira de seu mergulho no passado de banditismo social nordestino. “Aos ventos que virão” narra a trajetória de Zé Olimpio (Rui Ricardo), que após uma experiência como cangaceiro troca sua terra natal por uma vida nova em São Paulo, na construção civil. Ao voltar para sua região de origem, a fim de reconstruir o que lá deixou, ele cai na carreira política e vislumbra toda a fragilidade de caráter em torno das disputas pelo poder. Emanuelle Araújo e Luís Miranda integram o elenco do longa, rodado com R$ 2,4 milhões, no sertão sergipano, em Poço Redondo e Canindé de São Francisco.
— Pensado desde o fim dos anos 1980, quando meus filmes começaram a esbarrar numa dificuldade de aceitação entre os críticos, sem reproduzir o êxito de “Sargento Getúlio”, “Aos ventos...” narra uma transição cultural do Nordeste, com o fim dos conflitos gerados pelo fanatismo e pelo banditismo. Zé Olimpio, meu protagonista, passa do coronelismo das armas ao coronelismo da cédula eleitoral. E dialoga com “Sargento...” por aí — diz o cineasta, cujo último lançamento foi “Olho de boi”, com Gustavo Machado, premiado em Gramado em 2007.
Mesmo com os Kikitos de melhor ator e roteiro, “Olho de boi” não chegou nem perto do prestígio internacional de “Sargento Getúlio”.
— Meu longa seguinte, “Fronteira das almas”, de 1987, ganhou seis prêmios no Fest-Rio. Mas a repercussão não foi a mesma. Nem com ele nem com nada que fiz depois. Não lamento. Percebi num determinado momento que, por ter filmado de maneira profundamente autoral, tive dificuldades de me expressar — diz Penna, que lançou ainda “Aos ventos do futuro” (1987), “Mario” (2000) e “Voo cego rumo sul” (2004), este concebido para a TV. — Eu nunca parei.
Em sintonia com o real
Chamado de “um senhor romance” por Jorge Amado (1912-2010) e de “um marco literário” por Erico Verissimo (1905-1975), o livro de João Ubaldo foi filmado com um hiper-realismo que exacerba a violência verbal e física de um militar empenhado em cumprir ordens e transportar um preso político de Paulo Afonso a Aracaju. Originalmente, o longa faria parte de um projeto da extinta distribuidora e fomentadora Embrafilme para a realização de pilotos de séries para a TV. Naquela safra estavam o docudrama “Joana Angélica”, de Walter Lima Jr, e a ficção “O escolhido de Iemanjá”, de Jorge Durán, ambos de 1978. Só cinco anos depois disso, Penna conseguiu finalizar “Sargento Getúlio”.
— Era uma época em que o cinema brasileiro estava voltado para narrativas alegóricas. “Sargento Getúlio” causou espanto por sua narrativa baseada num personagem sintonizado com o real e com o momento político do país em sua abertura democrática — diz Penna, que teve o filme digitalizado apenas pela Programadora Brasil, projeto da Secretaria do Audiovisual para levar clássicos e cults nacionais em DVD apenas a universidades e centros culturais.
De cara, na estreia, o cineasta viu a atuação de Lima Duarte ser considerada uma das mais arrebatadoras do audiovisual brasileiro. Estas foram as palavras de críticos como Ely Azeredo, que, à época, no GLOBO, acolheu a estética de Penna com um Bonequinho aplaudindo de pé.
— Até hoje, eu vejo jovens diretores por este país reproduzirem soluções narrativas que eu experimentei no “Sargento Getúlio”. Agora, lançando “Aos ventos que virão”, vou lutar para restaurar os negativos do meu longa inicial e fazer uma versão em DVD — diz Penna, comemorando o fato de que seu maior êxito como realizador receberá uma homenagem da Balada Literária de São Paulo, no fim do ano. — Hoje, vejo que existe um mesmo Nordeste expresso por vozes diferentes, do Claudio Assis ao Kléber Mendonça e seu “O som ao redor”, que hoje está fazendo enorme sucesso. Meus filmes falam desse mesmo lugar. Mas à minha maneira.