NOVA YORK - Se “Orfeu da Conceição” (1954), a peça de Vinicius de Moraes, é um dos maiores clássicos da cultura brasileira, “Orfeu negro” (1959), a adaptação do francês Marcel Camus para o cinema, fez dela um cult mundial. Premiado com a Palma de Ouro, o Globo de Ouro e o Oscar, o filme era o preferido da mãe do presidente Barack Obama, como muito se falou recentemente; base de um incensado clipe lançado em outubro pela banda canadense Arcade Fire, caiu nas graças da nova geração. Um mito inesgotável de que a Broadway, finalmente, vai se apropriar.
Foi dada a largada para a realização de “Black Orpheus — A new musical”, com estreia prevista para o segundo semestre — altíssima temporada — do ano que vem. Focados no projeto desde junho, quando puseram as mãos no primeiro tratamento do texto, encomendado à dupla Charles Möeller e Claudio Botelho, os produtores americanos Stephen Byrd e Alia Jones-Harvey estão em vias de anunciar o diretor.
— É a decisão mais importante. É o que vai fazer diferença na hora de conseguirmos um bom teatro. Se você tem um grande nome dirigindo, isso faz uma baita diferença na Broadway — diz Byrd.
Lázaro Ramos e Taís Araújo sondados
Sentados num lobby de hotel no centro de Manhattan, ele e Alia contam que passaram quase cinco anos negociando os direitos da peça com a família de Vinicius. Antes, a bola esteve nas mãos dos diretores Julie Taymor, que abriu mão para conceber o hit “O rei leão”, e George C.Wolff, de “Angels in America” — que, corre no mercado, é um dos nomes cotados para comandar a nova montagem.
— Agora que o nosso projeto está na rua, temos sido procurados por gente como os músicos Lenny Kravitz e John Legend querendo participar — conta o produtor, que já esteve incontáveis vezes de férias no Brasil e lembra de ter visto o filme de Camus “pelo menos 35 vezes” na adolescência. — Mas, realmente, tudo vai depender do diretor.
Eles também tiveram uma reunião de sondagem com o casal de atores brasileiros Lázaro Ramos e Taís Araújo. Assim como na peça original de Vinicius — e no filme de Camus, e no longa “Orfeu”, de Cacá Diegues (1999) —, o musical vai transportar o mito grego do personagem-título para os morros cariocas, durante o carnaval. “Orfeu da Conceição”, que estreou em 1956 e teve uma curta temporada no Teatro Municipal do Rio, foi a primeira parceria de Vinicius com Tom Jobim (que musicou todo o espetáculo), a primeira peça a tematizar a favela, a primeira vez que um elenco de atores negros pisou no mais ilustre palco brasileiro. E, como se não bastasse, os cenários eram de Oscar Niemeyer.
— “Orfeu” é um ícone que queremos tratar delicadamente, com cuidado. Queremos ser fiéis e manter o máximo de elementos brasileiros que pudermos no projeto, incluindo os escritores e os atores — diz Byrd, lembrando que os brasileiros ocupam o segundo lugar no ranking de frequentadores dos musicais da Broadway e que o objetivo, cumprida a temporada em Nova York, é viajar com “Black Orpheus” para o Brasil. — Nunca vi nada autenticamente brasileiro na Broadway, sem ser estilo Las Vegas. E não queremos levar um filho corrompido para a sua própria casa.
A versão de Möeller e Botelho — que estiveram recentemente em Nova York para tratar da montagem — mistura a peça com o filme. Estão previstas 22 músicas: além das originais, como “Se todos fossem iguais a você”, há temas de Vinicius com diversos parceiros, em diversas fases, como “Canto de Ossanha” (com Baden Powell), “A tonga da mironga do kabuletê” (com Toquinho), “Canto triste” (com Edu Lobo) e até a inevitável “Garota de Ipanema” (com Tom Jobim), que abre o segundo ato, numa brincadeira das crianças que, como em “Orfeu negro”, ajudam a contar a tragédia. “Manhã de carnaval” e “Samba de Orfeu”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria, que só aparecem no longa, também estão no roteiro. Muitas canções já tinham sido traduzidas para o inglês; Botelho cuidou de verter as outras, num trabalho inverso ao que costuma fazer com suas adaptações de musicais americanos para o português.
— “Orfeu da Conceição” é um grande poema teatral. Mas é muito difícil uma peça em verso com apenas cinco músicas se sustentar nos dias de hoje — comenta ele durante um almoço em Manhattan.
Para Byrd e Alia, o maior desafio é justamente tornar a história comercialmente viável. Únicos produtores negros da Broadway (“E também do West End londrino”, como fazem questão de ressaltar), os dois fizeram carreira no mercado financeiro antes de abrirem a Front Row Productions, sete anos atrás. A fama veio com a montagem de dois clássicos de Tennessee Williams, “Um bonde chamado desejo”, com elenco multirracial, e “Gata em teto de zinco quente”, que não tinha brancos no palco e foi a peça mais lucrativa da Broadway em 2008. “Black Orpheus” é o primeiro musical da dupla, que acaba de encerrar a temporada de uma comentada versão de “Romeu e Julieta” estrelada pelo ator Orlando Bloom e pela atriz negra Condola Rashad.
— “Gata” rendeu mais de US$ 14 milhões. Retornamos 158% aos investidores e, quando levamos o espetáculo para Londres, ganhamos os maiores prêmios ingleses, incluindo um Laurence Olivier — orgulha-se Byrd, que está envolvido na adaptação de “The trip to Bountiful”, outra peça que a dupla produziu, para a Lifetime Television.
Alia acredita que o timing será grande aliado do novo “Orfeu”:
— Se o filme de Camus foi uma introdução do Brasil para o mundo, agora vamos reviver a peça de Vinicius neste momento em que o país emerge no cenário mundial, especialmente com a Copa e as Olimpíadas.
Möeller e Botelho, nomes fundamentais no desenvolvimento do teatro musical no Brasil, com 34 espetáculos no currículo, estão aprendendo a lidar com a realidade do mercado americano.
— O contrato prevê tudo nos mínimos detalhes. Se o musical for um sucesso e daqui a muitos anos alguém vender uma caneca na Patagônia, 0,22% do lucro vai para o sobrinho de Charles Möeller, que já morreu — diverte-se Botelho. — Ninguém pode mexer numa frase, e, quando começarem os ensaios, nós dois temos que estar presentes.
Se depender de Byrd e Alia, a dupla brasileira ainda terá outras funções na montagem. Para eles, o que vier é lucro.
— A gente, que tem uma história no Brasil, chega aqui e não é nada, precisa recomeçar do zero. O que, depois dos 40, é um exercício maior ainda, porque você tem que trabalhar a humildade, entender que aquela pessoa que está deitada naquele divã e que talvez tenha feito até menos peças que você é uma pessoa da Broadway que tem sei lá quantos Tonys. Você tem que parar para escutar. Mas também não pode se descaracterizar. Isso é o mais difícil — confessa Charles. — A Broadway é uma coisa muito importante na nossa vida, é óbvio que há uma realização. O.k., chegamos à Broadway, mas o que nos move sempre será o processo. O importante é agora, o momento. Vejo a Broadway como hoje. E vou acreditando nesse sonho Broadway dia a dia. Quando essa peça estrear vai ser a maior das honras, eu não vou estar em mim, mas acho que é importante viver o dia a dia para ficar na real.