SÃO PAULO - Um desvio de rota numa viagem de Recife a Aracaju foi a origem do romance “O sonâmbulo amador” (Alfaguara), de José Luiz Passos. A obra, consagrada pela crítica e vencedora do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, na última quarta-feira, também nasceu de uma costela de “Nosso grão mais fino” (Alfaguara), romance de estreia do autor pernambucano de 42 anos, publicado em 2009. Já a estrutura da narrativa partiu de um baú com cadernos de anotações deixados por seu pai, morto em 1999. O resultado foi, segundo o autor, “um romance sobre um desencantamento muito grande para com a vida, acompanhado de uma certa leveza, de um certo humor”.
Especialista em Machado de Assis, Passos tem como escritor um interesse profundo em seus personagens, nos quais mergulha seguindo uma tradição que vai de Tolstói ao modernismo, passando por Henry James, seu escritor preferido, e Virginia Woolf. Após a cerimônia de premiação do Portugal Telecom, ele falou sobre seu interesse pelas narrativas do fim do século XIX, a importância política do prêmio e o recente contato com o Twitter e o Facebook — um amigo lhe aconselhou: “se você quer acompanhar como as pessoas estão lendo seu romance, abra uma página de Facebook e dê a cara a tapa”. Vivendo há 18 anos nos Estados Unidos, onde é professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, Passos sonha que sua obra tenha uma circulação fora do Brasil, espelhando sua trajetória de imigrante.
Visita ao passado
“Em 2006, fiz uma viagem de carro de Recife a Aracaju para visitar um amigo, o escritor Francisco Dantas. No caminho, decidi fazer um desvio na rota e parei na usina de açúcar onde nasci em 1971. Nunca tinha voltado lá, de onde saí aos 3 anos de idade, onde meu avô havia sido químico de açúcar na década de 1930. Hoje é massa falida. Inventei uma história para poder entrar, e eles chamaram um homem, uma espécie de guia, que era técnico em segurança do trabalho na usina. No meio do tour, percebi que esse senhor tinha um apego, uma nostalgia por um passado que era o meu, que deveria ter sido o meu e não foi, porque eu saí de lá. Essas pessoas pararam no tempo no momento da ruína. Essa é a origem de ‘O sonâmbulo amador’, de Jurandir, o personagem principal e narrador”.
Criação do romance
“Encontrei cadernos, vários, com anotações (em Recife). Eram diários de sonhos, pequenas biografias de pessoas da família, cadernos de análise. Isso me deu a chave para a estrutura do livro. Compus o romance em quatro cadernos. Me impus uma regra de composição: antes de escrever o enredo, durante um ano e meio redigi 120 sonhos autônomos. Só depois comecei a compor a história e a enxertar os sonhos para que eles tivessem plena autonomia. Nem o enredo explica os sonhos, nem os sonhos explicam o enredo. Eles funcionam como claraboias, como janelas para esse plano inconsciente, noturno. O leitor vai percebendo camadas cada vez mais profundas de uma personalidade marcada em parte pelo ressentimento, pelo recalque, em parte por uma utopia de graça, mesmo no infortúnio”.
Gosto pelos clássicos
“Talvez por deformação de ofício, essas formas narrativas robustas do final do século XIX, com personagens redondos, inteiros, e maior profundidade e densidade psicológica me interessam muito. Não saberia como me filiar. Alguém disse que dos jovens narradores eu sou um dos mais esquisitos, porque sou um jovem narrador meio velho. Não que minha prosa seja tradicional, pelo contrário, ela é bastante experimental. Mas ao mesmo tempo ela busca em narradores clássicos esse lastro para a ideia de um eu que para mim ainda faz sentido”.
Twitter e Facebook
“(Depois de começar a usar as redes sociais) Estabeleci uma relação diferente com a imprensa, com novos leitores, blogueiros, que até então não conhecia, encastelado na torre de marfim da academia, vivendo fora do Brasil, estudando século XIX”.
Portugal Telecom
“O prêmio pertence ao livro, não ao autor. Faz com que o livro tenha uma visibilidade que de outra maneira não teria. Faz com que um editor pense duas vezes antes de recusar o próximo original. No meu caso, de quem escreve um romance que se passa em Pernambuco no século passado e que vive há 18 anos fora do Brasil, sou invisível, estou praticamente na contramão das tendências mais expressivas ou visíveis da literatura contemporânea. O prêmio dá presença a meu livro aqui e faz com que eu possa respirar um pouco, preparar um próximo livro. Um prêmio inteligente é aquele que faz uso de um gesto político para revelar algo novo.”