HAMBURGO - Depois de um corredor com algumas obras emblemáticas de mais de 60 anos de carreira, a sala principal do ateliê de Almir Mavignier em Hamburgo revela de imediato três pinturas figurativas da década de 1940. São as únicas em meio a telas abstratas, esculturas geométricas e centenas de cartazes. Mas representam o início de uma trajetória transformada pela convivência com os internos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no ateliê coordenado por Nise da Silveira; pela descoberta do design nas aulas da Escola da Forma em Ulm, na Alemanha, país adotado pelo carioca desde 1953; pela experiência como professor em Hamburgo, onde mora desde 1965, com a mulher, a alemã Sigrid Quarch.
Aos 88 anos, com um edema no olho direito causado por diabetes, Mavignier não pinta mais, dedicando-se aos cartazes que o consagraram. O que ele chama de ateliê, portanto, não é um espaço de criação, e sim um pequeno museu, acervo de seu trabalho. Agora, um pedaço dessa produção chega aos brasileiros, que o conhecem pouco, pelo livro “Almir Mavignier” (Memória Visual), que a jornalista e curadora Daniela Name lança hoje, às 19h, na Casa de Cultura Laura Alvim, em debate com a crítica Fernanda Lopes, que fez a cronologia comentada da obra.
Hoje, o artista produz no próprio apartamento. Na parede da sala, tem destaque a obra “Progressão e rotação” (1952-53), tela que marca o início da virada em sua forma de pintar, após uma visita a ateliês de artistas concretos em Zurique, na Suíça, que lhe “abriu os olhos” — os mesmos que tinham sido, segundo ele, “ofuscados” pela obra do escultor suíço Max Bill exposta em 1950 no Masp, em São Paulo. Morando em Paris desde 1951, Mavignier foi a Zurique no ano seguinte para conhecer Bill. Quando o suíço lhe contou que seria o reitor de uma escola de design em Ulm, o jovem de 27 anos disse que queria ir para lá.
— Ele me respondeu: “Essa escola é para jovens alemães que foram isolados da cultura pela guerra, e não para artistas românticos que vivem em Paris”. Ele recusou, e não de uma forma elegante — conta Mavignier, na sala de casa. — Quando soube que ele ia ao Brasil receber um prêmio, pensei: “Agora vou para Ulm, porque ele não está lá”. Quando cheguei, ainda não havia escola, só capim. Fui procurar o (pintor e designer) Willi Baumeister em Stuttgart. Quando soube que eu fui para lá para ficar perto de Ulm, Bill me aceitou.
Após o choque com a língua, o hábito de comer pão à noite e o inverno que era “expulso” com uma festa de carnaval — “espécie de cabaré político, em que as meninas se vestiam de soldado”, diz —, o carioca, que teve aula com Joseph Albers, passou a explorar a luz e a geometria, as relações entre figura e fundo, com efeitos óticos que davam ritmo à pintura e, logo, aos cartazes — o que a autora, no livro, chama de “dança da forma”.
— O início foi duro. Pagava dois marcos todos os dias para comer o que sobrava de um restaurante. Mas não queria voltar. Sentia que precisava ver mais pintura, museus — diz ele, que, pouco a pouco, se deixou abrir para o mundo do design, e não largou mais. — Eu queria ser pintor. Mas nasceu uma vontade de fazer aquilo sem ambição, peguei o gosto, e hoje os cartazes são uma das coisas mais importantes para mim.
Cartazes aditivos
No início dos anos 1960, inspirado pelo que viu na Munique do pós-guerra, Mavignier começou a criar “cartazes aditivos”, que podem ser expostos sozinhos ou em combinação, num jogo de ritmos:
— Munique estava em reconstrução, tudo era protegido por tapumes onde se colavam cartazes. Vendo aquele caos, eu tive a ideia de criar adições com as formas. Hoje, quando não tenho encomenda, faço um cartaz aditivo. Um cartaz sem encomenda destrói a fronteira entre design e pintura.
Foi nos anos 1960 que a obra de Mavignier foi reconhecida e levada a mostras como a documenta de Kassel e a Bienal de Veneza. E, mesmo já estabelecido como artista e professor da Escola de Artes Visuais de Hamburgo, onde deu aulas de 1965 a 1990, ele nunca esqueceu um período decisivo e anterior à experiência europeia.
— Eu pedia para o aluno dizer o que tinha feito, porque isso treinava a autocrítica. Peguei isso da terapia de grupo no Engenho de Dentro — conta.
O livro mostra a importância do início da sua produção, que, segundo a autora, formou um “grupo informal” com Abraham Palatnik, Ivan Serpa e o crítico Mário Pedrosa, anterior aos concretos e neoconcretos. Como Palatnik, que presta depoimento no livro, Mavignier também diz ter sido essencial o contato com os internos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro. Pouca gente sabe, mas foi ele quem, buscando espaço para pintar no hospital onde era monitor, aos 21 anos, pediu à psiquiatra Nise da Silveira para usar uma sala — e acabou, meio sem querer, criando o ateliê terapêutico onde surgiram artistas como Emygdio de Barros, Raphael Domingues e Fernando Diniz.
— Foram os melhores anos do Engenho de Dentro, uma reunião de pessoas que não se repetiu, fazendo coisas espantosas — diz ele, que produzia ao lado dos internos entre 1946 e 1951.
Não é à toa que, entre aquelas três telas figurativas que recebem o visitante no ateliê de Mavignier — dispostas cronologicamente ao lado de obras feitas em Paris e das primeiras telas de Ulm —, uma delas estampa o rosto de Emygdio de Barros:
— Quando vi as primeiras aquarelas do Emygdio, fiquei enlouquecido. Comecei a comprar para ele o material que comprava para mim. Eu sonho com um museu de Emygdio de Barros.