RIO - A certa altura dos anos 1980, Luiz Carlos Miele estava dirigindo espetáculos de quatro cantoras, simultaneamente, quando um repórter lhe perguntou “quem eram as três maiores cantoras do Brasil”. “Elis Regina”, ele respondeu. “Você não entendeu”, retrucou o jornalista. “Entendi, sim. Elis Regina”, repetiu ele, comprando, na ocasião, briga com as outras três. Na última segunda-feira, ao contar a história, Miele se emocionou com a lembrança da amiga e emocionou também João Marcello Bôscoli, filho da artista. Os dois estavam no palco do Teatro Oi Casa Grande, para um encontro particular: traçar uma espécie de perfil afetivo da cantora, tema de “Elis, a musical”, com estreia prevista para 8 de novembro. A seu lado, Nelson Motta — autor, com Patricia Andrade, do texto — e Dennis Carvalho, que pela primeira vez assina a direção de um musical. Na plateia, cerca de 60 atores, músicos e integrantes da equipe técnica e da produção. Ali se dava a partida para os ensaios, que começaram no dia seguinte.
O temperamento forte da artista — “se não fosse assim não teria sobrevivido naquele mundo machista e autoritário”, observou Nelson Motta — e suas qualidades como profissional foram temas dominantes na conversa.
— Era um personagem extraordinário. Chegou ao Rio com 20 anos, começou a cantar no Beco das Garrafas, e em seis meses já era uma celebridade. Triunfou em gêneros musicais tão diferentes como o rock, o sertanejo e o bolero. Só ela conseguiu isso — disse Motta.
Artista genial, mãe presente
As muitas histórias do casamento com o jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli, pai de João Marcello, deram o tom mais engraçado àquela tarde. Motta citou uma frase definitiva de Carlos Imperial sobre o casal: “Deus castigou os dois. Casou um com o outro.” Miele arrancou gargalhadas ao narrar um almoço (a cantora adorava cozinhar) em que Elis recebeu em casa repórter e fotógrafo de uma revista feminina. Um prosaico pedido de Bôscoli — “me passa o sal” — podia desandar tudo. E desandava. “Por que sal? Tá sem sal? Tá com saudade da comidinha da tua mãe? Aquela alcoólatra?” “E a tua? Só porque pariu um canário acha que pode dar palpite em tudo?” Miele, que também estava à mesa, contou como os jornalistas mantiveram o rosto colado ao prato enquanto o casal exercitava sua verve belicosa.
João Marcello lembrou uma conversa que teve com o pai, depois de ouvir Tom Jobim dizer que ele transava com todas as mulheres do Rio. “Isso é coisa do Tom, que fica tirando o B.O. do colo dele para botar no meu”, disse então Ronaldo Bôscoli, um notório sedutor, para depois admitir: “Tá bom, tá bom, eu comi todo mundo. Meu filho, sou um profissional. Se falar, eu como”. É de Bôscoli também — e João Marcello frisou a autoria — a seguinte frase sobre Elis: “Meu filho, a tua mãe é uma cantora diferente. Ela é inteligente e gosta de homem”.
— Quando fui convidado para vir aqui, fiquei pensando em como poderia ser útil — disse João Marcello, que tinha 11 anos quando Elis morreu, em 1982, aos 36, e decidiu que poderia contribuir dando informações sobre a Elis mãe, mais do que sobre a cantora. — Costumo ler biografias de artistas, e é comum, nelas, a gente se deparar com pais ausentes. Minha mãe não era assim. Era difícil uma semana em que não fôssemos à feira juntos, em que ela não me buscasse na escola. Lembro dela fazendo as capinhas dos meus cadernos.
Não faltaram sentenças brilhantes, argutas, engraçadas. Na primeira fila da plateia, Laila Garin, baiana de 35 anos escolhida para viver Elis em testes dos quais participaram mais de 200 cantoras/atrizes, anotava tudo. A seu lado, Felipe Camargo, a quem coube o papel de Ronaldo Bôscoli, sorvia cada detalhe das saborosas descrições do seu personagem. Já Claudio Lins teve que perguntar sobre o seu: Cesar Camargo Mariano, segundo marido da cantora e pai de Pedro e Maria Rita.
— Cesar era o oposto do Ronaldo, de natureza introspectiva. Nunca o ouvi falar mal de ninguém — contou Motta.
Filho de Lucinha e Ivan Lins, Claudio se emocionou quando, na miscelânea de imagens da cantora exibidas após a conversa, surgiu um videoclipe de “A nossos filhos”, canção de seu pai e de Vitor Martins. Délia Fischer, que assina a direção musical, foi imediatamente batalhar pela inclusão da canção no espetáculo (a lista tem 39 músicas, entre elas “Arrastão”, “O bêbado e a equilibrista” e “Madalena”), antecipando, internamente, algo que Dennis Carvalho previu ao abrir os trabalhos daquela tarde:
— Comparo este espetáculo à seleção brasileira: todo mundo é técnico. Vai ter gente dizendo: “Ih, tá faltando aquela música... ih, como é que não puseram aquela lá? O Bôscoli não falava assim, o Miele não falava assim...”
Personagem sem caricatura
Laila Garin está preparada. Ela, que não guarda nenhuma semelhança física com a “Pimentinha”, acredita que o fato de ter sido escolhida é sinal de que não estão procurando uma caricatura.
— Ela é tão essencial, tão inteira, que imitar um riso ou um gesto da mão nunca vai ser suficiente. Soaria falso. E Elis não era falsa.
Felipe Camargo, estreando em musicais a convite de Dennis Carvalho, seu diretor na novela “Sangue bom”, no ar na TV Globo, conta que é a primeira vez em que aceita fazer uma peça sem ter lido o texto antes.
— É um personagem polêmico, rico, só essa largada já é muito boa — disse, animado.
Além de Délia Fischer, a ficha técnica do espetáculo tem vários nomes de peso: Marcos Flaksman (cenário), Marilia Carneiro (figurinos), Maneco Quinderé (luz), Alonso Barros (direção de movimento) e Beto Carramanhos (visagismo). “Elis, o musical”, é o primeiro de três espetáculos que Aniela Jordan, Luiz Calainho e Fernando Campos, sócios da Aventura, produtora de musicais como “Hair” e “Um violinista no telhado”, estão chamando de “uma aventura brasileira”: em seguida, virão “Se eu fosse você” (março de 2014), com direção de Daniel Filho, e “Chacrinha” (agosto de 2014), com texto de Pedro Bial.