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‘Deixo-me apaixonar pelos personagens’, conta Mia Couto, às vésperas de participação na Bienal

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RIO - Vencedor do Prêmio Camões 2013, o moçambicano Mia Couto está no Rio como um dos principais convidados da Bienal do Livro. O autor de obras como “Cada homem é uma raça” (Companhia das Letras) participa neste sábado, às 19h30m, de uma mesa com Paulo Lins e a colunista do GLOBO Flávia Oliveira no espaço Mulher e Ponto; e, no domingo, às 17h, conversa com Ana Maria Machado e Luiz Ruffato no Café Literário. A pedido do GLOBO, sete autores lusófonos fizeram perguntas para ele: o angolano Pepetela, os portugueses Inês Pedrosa e Gonçalo M. Tavares, e os brasileiros Andrea del Fuego, Tatiana Salem Levy, Alberto Mussa e Marcelo Moutinho.

PEPETELA: Como te nasce uma estória? De uma ideia genérica inicial, de um plano previamente elaborado, de uma frase que meio inconsciente escreves e depois se vai desdobrando? Ou de outra forma qualquer?

A história nasce de outras histórias. De pessoas que se revelam, de encontros fragmentados. Mas não sou capaz de construir um plano. Nenhum dos meus livros teve essa arquitetura antecipada. Deixo-me apaixonar pelos personagens, a ponto que eles se tornem uma presença obsessiva dentro de mim. Durmo com eles, acordo com eles, vou para o serviço com eles. E por razão dessa paixão eles me autorizam a que me aproxime, espreite as suas vidas e escute os seus segredos. São esses personagens que me vão relatando a história. A minha função, durante um tempo, é manter essa relação apaixonada até que surja de dentro de mim um outro eu que faz a poda daquela árvore caoticamente ramificada. Esse é um segundo momento, mais oficial, mais de disciplina. É aqui que o escritor se converte num reescritor.

MARCELO MOUTINHO: Seus textos são marcados pela recriação de palavras, por neologismos e inovações sintáticas, recursos próprios da fala. Qual a importância da oralidade para a sua literatura?

Do ponto de vista literário, eu venho da poesia, venho dessa oralidade que toda a poesia pode conter. Do ponto de vista da minha história, eu nasci e vivo numa sociedade em que a oralidade é absolutamente dominante. Quando um certo livro me apaixona, a leitura se atrapalha e eu acabo escutando vozes. E sou de tal modo inundado que tenho que pousar o livro. Como se o verbo “ler” não desse conta dessa descoberta, feita página à página. A minha aposta é dar corpo à palavra, deixar que a página se abra às vozes e às falas da oralidade. E isso acaba contaminando a própria escrita, que se torna mais plástica e que aceita recriar uma fronteira nova com o universo da oralidade. Já disse antes: sou um poeta que escreve histórias.

ALBERTO MUSSA: Considerando a importância fundamental da mitologia e das tradições orais dos povos africanos, como é seu processo de apropriação desses legados na literatura? Qual é a relação que você estabelece com os mitos dos povos de Moçambique?

Interessam-me os medos e inseguranças que levaram a que se construíssem lendas e mitos. Interessa-me a sua lógica de construção enquanto narrativas e interessa-me a beleza que muitas vezes eles transportam. Não sei se os povos africanos têm mais tradições orais e mais mitos do que os povos de outros continentes. Creio que não. Existe, noutras culturas, um modo envergonhado de conviver com esse patrimônio. Mas esse acervo de histórias está presente. Apenas foi formatado para se apresentar nos lugares próprios e com as indumentárias adequadas: revela-se na criação artística, no mundo de fantasia do cinema, nos sonhos que são relatados em murmúrio.

INÊS PEDROSA: Existe, na tua opinião, uma “literatura de expressão portuguesa”? Em caso afirmativo, quais seriam as suas características distintivas?

Não creio. Existem várias. Tantas quantos os autores que as fazem. Existe uma literatura de expressão inglesa? A resposta será a mesma. O que que creio que se pode dizer é que os escritores de língua portuguesa partilham de uma condição histórica que teve séculos de encontros e desencontros. E também que o seu idioma tem uma história partilhada que faz com que tenham uma lógica e uma dinâmica que lhe são próprias. O fato de ter havido o Brasil e ter havido os países africanos introduziu um dinamismo particular à língua portuguesa que nada tem a ver com alguma caraterística de essência. O Brasil e os países africanos imprimiram as suas marcas de cultura sobre a língua e isso provocou que o nosso idioma comum tenha uma plasticidade própria.

ANDREA DEL FUEGO: No que a formação em biologia influencia em sua literatura? E seu olhar poético migra para outras áreas em que atua, como na biologia?

No meu caso, não sei que fronteira há entre a escrita e a biologia. O que me fascina na biologia é que ela relata a mais bela de todas as epopeias: a história da Vida, é o modo como ela sugere que não somos exatamente quem pensamos ser. Somos, afinal, feitos de outros seres que nos habitam: bactérias e vírus e outros micro-organismos. A biologia diz isso: que não somos tão individuais quanto pensamos. Não somos puramente humanos. Somos mestiços, todos nós. E essa mestiçagem envolve seres que figuram numa dimensão que parecia longínqua. Esse pressuposto, por si, é uma cambalhota no modo de nos olharmos. E a biologia sugere outras coisas, como o descentramento da nossa espécie, que, afinal, apenas é parte de um sistema mais amplo. Infelizmente, essa carga de sugestão do pensamento ecológico foi recuperada pela economia de mercado e pela visão mecanicista e redutora que essa economia comporta. Tudo isso foi importante entender para me fazer escritor. A biologia restituiu-me familiaridade com seres que pareciam distantes. Hoje sou capaz de escutar o que uma árvore quer dizer. Seria de esperar que, sendo um cientista, eu estaria mais carregado de certezas. É quase o inverso. Estou mais disponível a deixar de ter certezas.

GONÇALO M. TAVARES: Quando se está no meio da floresta, dos bichos e das plantas, o que pensas e como se pensa sobre a política dos homens? O que trazes desse mundo para o outro mundo onde há pessoas que te querem ouvir? E levas algo da língua para essa natureza, que aparentemente não fala (nem sequer português!) e não ouve?

Quando estou no meio da floresta eu procuro uma fala, uma língua para falar com essas entidades. Terra, bichos e plantas dizem coisas, sussurram segredos e mistérios. O problema está que deixamos de saber escutar. Esse é o percurso que me encanta: reabilitar essa escuta dentro de mim. O escritor é sempre um escutador. E quero reaprender os idiomas de quem não fala língua humana nenhuma. Nesse outro lado de que falas, eu me sento a olhar a minha própria língua, que deixa então de ser herança já feita para se encher de História e de histórias. E começo a conversar com a minha língua portuguesa, como se ela fosse terra, água e gente.

TATIANA SALEM LEVY: O que dizem seus olhos?

Espero que digam “espanto”. Esse sentimento que é a fonte de todo o desejo de encontro. Esse espanto é o modo de a infância se guardar dentro de nós.


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