RIO - Quem entrasse na tarde da última quarta-feira no estúdio do Projac onde estão sendo gravadas as cenas de “Joia rara”, próxima novela das seis da TV Globo, poderia por um instante se julgar no lugar errado. Num cenário de cabaré dos anos 1940, o que tocava era a música da dupla francesa de rock eletrônico Daft Punk, fazendo um grupo de pessoas pular animadamente. Não se tratava de nenhuma licença artística. Era parte do aquecimento promovido pela diretora da atração, Amora Mautner, que liderava a festa incomum para fazer fluir a energia e arrancar uma atuação menos racional e mais espontânea do elenco:
— Quando a gente tira a razão das coisas, o inconsciente atua, e o inesperado acontece — sintetiza ela.
Tem dado certo. Há 18 anos na Globo, onde vem fazendo uma bem-sucedida carreira, Amora, 38 anos, saiu do circuito interno da TV para os holofotes da mídia depois do êxito de “Avenida Brasil”, onde ela, como uma das diretoras da obra de João Emanuel Carneiro, era responsável pelas elogiadas cenas da família de Tufão e Carminha, personagens de Murilo Benício e Adriana Esteves. Agora, enquanto prepara a novela das seis, que estreia em setembro, acumula projetos. Na Globo mesmo, tem algumas ideias engatilhadas, entre elas um seriado em parceria com a amiga de infância Carolina Jabor. No teatro, uma milionária montagem de “O rouxinol e o imperador”, do conto de Andersen, em 4D, com adaptação e trilha sonora assinadas por seu pai, o filósofo, escritor e compositor Jorge Mautner, mais Gilberto Gil e Arnaldo Antunes. A direção, vai dividir com o cineasta Guilherme Coelho (de “Fala tu”), seu namorado há três anos, e Joana Jabace, também diretora de “Joia rara”. E ainda planeja dois filmes: um de baixo orçamento, adaptado de um romance contemporâneo brasileiro cujos direitos ainda está negociando, e uma superprodução a partir do último livro do pai, o biográfico “O filho do Holocausto”. Amora, cujo nome é o feminino de amor, anda por aí bem animada.
— Uma amiga minha costuma dizer: “Você é tão doente, tão obsessiva, que vai conseguir qualquer coisa” — diz.
Diz? Verbo errado. Ela despeja palavras, que se organizam num discurso coerente e organizado. O verbo andar dois parágrafos acima talvez seja igualmente pouco: ela avança, obstinada.
Cinco anos vendo filmes
E tem sido assim desde cedo. Quando decidiu ser diretora, aos 17 anos, terminou um namoro de seis meses para adquirir cultura cinematográfica. Durante cinco anos viu “os chatos” René Clair, Pasolini (“uma bicha fazendo suruba”), entendeu Rosselini, apaixonou-se por John Cassavetes. Estava tão determinada que adiou qualquer possibilidade de relacionamento afetivo para depois que ticasse todos os filmes da sua lista. Do mesmo modo, agora, está tão ocupada pelos próximos três anos, com projetos na TV, no cinema e no teatro, que congelou óvulos, protelando para depois de 2016 a perspectiva de dar um irmão à filha Julia, de 5 anos, de seu casamento com o ator Marcos Palmeira. Os compromissos da filha, aliás, são uma das poucas coisas que a fazem faltar a uma gravação. Nunca deixou de ir a uma festa da escola.
E, num ambiente altamente competitivo, no qual é voz corrente a necessidade de ser muito macho para chegar a diretora, ela é feminina até o último fio descolorido de seus longos cabelos.
— Sou muito mulherzinha. Agora mesmo, o Guilherme está filmando em Belém (“Órfãos do Eldorado”, adaptação do livro homônimo de Milton Hatoum), mando por Sedex presentinhos, mando biscoitinho, queijo, fotos minhas — diz ela, que tem kit de maquiagem, hidratante e afins no carro e cita com animação as apenas dez calorias contidas numa ostra (foram 280 calorias no jantar-entrevista com a repórter).
Magra, bonita, talentosa. Essa é a parte boa. E a fama de difícil?
— Acho que sou uma pessoa muito forte, muito intensa, e, como todo mundo assim, tem gente que gosta e gente que não gosta. Não perco quase nenhum tempo com isso. A coisa mais forte que tenho, e que vem dos valores recebidos em minha casa, é a liberdade existencial. Ligo bem pouco para o que os outros acham. Não posso dizer que não ligo nada porque vivemos em sociedade, e às vezes o que os outros dizem pode gerar consequências bem objetivas na nossa vida. Mas não acredito em vida após a morte, então estou aí para viver as emoções, ser feliz, infeliz, o que for — diz, com um discurso apoiado em 31 anos de análise. — Minha mãe (a historiadora Ruth Mendes de Sousa) me pôs na terapia aos 7 anos, ela considerou que era importante eu me organizar diante do mundo diferente do que eu vivia na minha casa.
Amora se organizou, e, instigada pela segunda terapeuta (está agora na quarta), ligou para Roberto Talma, que conhecera rapidamente, pediu estágio na dramaturgia e se destacou com um estilo próprio. Hoje, seu método de trabalho mistura o teatro físico do polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), a neurociência (leu os nove livros da brasileira Suzana Herculano-Houzel, e agora enfrenta o texto mais difícil do português António Damásio), a improvisação e o erro, tentando tirar vícios como as pausas e os olhares para a câmera, comuns na dramaturgia televisiva. Marcos Caruso, que está na terceira novela com ela, tem uma imagem muito clara para defini-la:
— A Amora é como o Rio Amazonas: extremamente caudaloso, forte, que tem o seu curso natural de explosão, mas que também recebe água dos afluentes. E fica um rio melhor quando recebe essas águas. Ela sabe que vai desaguar no oceano, sabe que é volumosa, mas não abre mão de receber os afluentes. Ela acredita no espontâneo, vai na contramão: promovendo a possibilidade do erro, ela chega no acerto.
Adriana Esteves, que Amora dirigiu em “Avenida Brasil”, é outra que se alinha com o método da diretora:
— Ela tem um estilo bem autoral. E gosta de atores autorais. Acredito profundamente na sua forma de trabalhar. É muito talentosa, domina aquilo. Comigo, funciona muito bem. Muito da Carminha veio desse estímulo, ela arrancava de mim. Eu dizia que ela era o meu gerador de energia. Apelidei de 220 volts.
Teatro da vertigem para crianças
Amora sabe que o processo nem sempre é fácil. Já enfrentou resistências, então costuma trabalhar com quem conhece, e, aos novos, avisa: quem não tiver interesse em errar, quem preferir algo mais cômodo pode pedir para sair.
— O meu desejo é fazer trocas energéticas, quero promover transformações e me modificar também no processo — diz ela. — Sou hedonista. Tenho muita dificuldade de viver o momento sem prazer. Se não tem prazer envolvido, viro uma menina mimada de 5 anos, insuportável.
É por isso que, de certas coisas, nem passa perto. Musicais, por exemplo — “Pode escrever com letras garrafais: odeio!”. Na adaptação que fará de “O rouxinol e o imperador”, com custo estimado de R$ 20 milhões (dos quais R$ 10 milhões já foram captados), só o rouxinol cantará. Ela pretende recriar no teatro as quatro estações do ano — “vai chover, nevar sobre as crianças, elas vão entrar na floresta, as cadeiras vão tremer; vai ser um Teatro da Vertigem para crianças”, diz, referindo-se ao grupo paulista que encena peças vigorosas em espaços não convencionais:
— Quero que as crianças chorem de emoção, como os adultos choram quando algo os comove.