LOS ANGELES - “É uma história complicada. Era fundamental que os atores entendessem a confusão toda. Minha primeira reação, após ler o roteiro, foi: huuum, esse trio vai ter de gastar a inteligência para entender a trama.”
A declaração é de Danny Boyle, o cineasta inglês de 56 anos. O assunto é “Em transe”, filme que estreia sexta-feira no Brasil e que dividiu a crítica nos dois lados do Atlântico. O trio de protagonistas é formado por James McAvoy, Rosario Dawson e Vincent Cassel. E o roteiro leva a assinatura de John Hodge, parceiro de Boyle em “Trainspotting — sem limites” (1996), com quem não trabalhava desde “A praia” (2000). Em março, a dupla anunciou que “Porno”, sequência de “Trainspotting” em que o escritor Irvine Welsh imagina seus personagens 20 anos após os eventos originais, chegará às telas até 2016, com o mesmo elenco, incluindo Ewan McGregor, Robert Carlyle e Kelly Macdonald.
Vencedor do Oscar de melhor diretor por “Quem quer ser um milionário?” em 2009, Boyle voltou a ser celebrado pela Academia de Artes de Hollywood há dois anos com seis indicações para seu “127 horas”. O filme trouxe James Franco no papel do alpinista americano Aron Ralston, famoso por sua luta pela sobrevivência depois de ter ficado preso e isolado por cinco dias no Parque Nacional do Grand Canyon. “Em transe”, diz o diretor, deixa de lado a reinterpretação do real e oferece um passeio pelo mundo do inconsciente com pinceladas surrealistas.
No filme, McAvoy é Simon, ladrão amador que rouba, de uma casa de leilões, a icônica tela “Bruxas no ar” (1797), de Goya, e, depois de uma pancada na cabeça, não consegue lembrar onde escondeu a valiosa obra de arte. Seu comparsa Franck (Cassel), decide contratar uma especialista em hipnose, a Elizabeth de Rosario Dawson. Mas será esta a narrativa proposta por Boyle?
— No roteiro, não há menção a um quadro ou artista específico. Mas queria uma obra de Goya, o primeiro grande pintor psicológico, o primeiro a pintar o que há dentro da mente humana, disposto a ilustrar sua própria loucura. Escolhi “Bruxas no ar” por conta da imagem do homem debaixo de um cobertor. Ele ilustrava com exatidão o Simon de minha imaginação, perdido, impossibilitado de ver o que está à sua frente. As bruxas voando, por sua vez, indicavam a estética do filme, um convite para o espectador mergulhar no surreal. Ofereço imagens completamente inventadas, mas que podem ou não ser parte da realidade. O grande “truque” do filme é fazer com que o espectador acredite que está vendo o agora, mas não se sabe, até o fim, o que é consciência, o que é transe. O que é, afinal, a realidade?
Boyle aponta para várias singularidades da criação de “Em transe”. O trio de protagonistas, um dos problemas do filme de acordo com críticas nos EUA e na Inglaterra, aparentemente atordoado com a dificuldade em se seguir um ou outro condutor da trama. A indefinição de passado, presente ou futuro, memória, alucinação ou realidade. E a própria decisão de filmar em duas etapas, separadas por uma pausa por conta da abertura das Olimpíadas de Londres. A ideia original, aliás, era a que a trama se passaria em Nova York, não na capital do Reino Unido. Mas Boyle aceitou o convite do comitê organizador dos Jogos Olímpicos de 2012 e realizou uma das mais animadas cerimônias de abertura do evento, imortalizada pela imagem da rainha Elizabeth II descendo de helicóptero com o 007 Daniel Craig no estádio olímpico. Agora, perguntado se tem alguma dica para a cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio, o diretor dá uma gargalhada:
— Tenho: boa sorte para vocês! Não, vocês farão algo brilhante. O Rio é uma cidade com muita personalidade. O segredo é deixar essa personalidade aparecer. As Olimpíadas são um ideal que todos amamos. Mas a verdade é que a corporação responsável pela organização dos Jogos é mais parecida com uma Coca-Cola da vida do que com o sonho a ser sonhado junto por espectadores mundo afora nos dias de competição. Parte do segredo de uma cerimônia de abertura é ter peito para dizer aos organizadores grandessíssimos nãos. “Não vamos fazer do seu jeito, vamos fazer do nosso jeito.” Ah, só de falar já imagino o que vocês farão. Amaria estar no Rio na abertura, espero que os organizadores me convidem.
Boyle usou a interrupção da filmagem para, em suas palavras, se desfamiliarizar com “Em transe”. Reviu o que havia filmado com “olhar quase virgem” e decidiu incluir mais pistas para o espectador se sentir compelido a decifrar uma trama que também acontece em telas dentro da tela, como na plataforma de iPad utilizada pelos protagonistas, crucial para o final mais ou menos feliz.
— Filmar assim é raríssimo. Pude experimentar essa sensação, que só o público tem, de ver algo desconhecido. Lá estava eu, vendo meu filme de fato em primeira mão. E então percebi que em um filme como este, repleto de segredos, você tende a proteger seu projeto ao extremo. Estava ficando paranoico. Mas aí você corre o risco de fazer algo hermético. Foi quando decidi filmar a cena de James batendo no vidro. Parece sem sentido, mas dá a impressão de que o personagem sabe que há algo errado. E o público passa a desconfiar disso também — aposta.
Boyle se sente envaidecido com as associações de “Em transe” a criações de seu compatriota Christopher Nolan, como “A origem” e “Amnésia”. E lembra que ainda é possível fechar os olhos, na sala de cinema, e ter outra versão de seu filme, narrado pela personagem de Dawson, reportadamente sua namorada durante as filmagens. É ela quem conduz os transes por que passam os demais atores. E é através de sua voz que o espectador viaja para locais tão reais quanto imaginários.
— Também há aqui um parentesco com “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, de Michel Gondry — diz. — Não por acaso os três estão entre meus filmes favoritos. Mas a maior influência aqui é o cineasta inglês Nicolas Roeg. Ele é meu mestre, um pioneiro na edição não linear, em que futuro e passado são tão disponíveis para o espectador quanto o presente. Tudo ao mesmo tempo agora. Amo essa liberdade. Roeg é, para mim, a tradução do que o cinema pode ser.
‘Transpotting’ 20 anos depois
Danny Boyle avisa, sério, que, quando se trata de “Trainspotting”, ele “não está de brincadeira”. As filmagens devem começar em dois anos, e a espera é proposital, pois o diretor quer os atores de fato aparentando duas décadas a mais do que quando encarnaram seus personagens na segunda metade dos anos 1990.
— Para os fãs do filme, deixo aqui minha palavra: esta não vai ser uma sequência daquelas típicas de estúdio de Hollywood. Queremos fazer um filme íntegro, focado na passagem do tempo. O critério central para “Trainspotting 2” (o título ainda não está definido) será não desapontar seu público cativo.
Boyle já descreveu “Porno” como um livro menor em relação ao original, e a ideia é que o filme seja baseado “livremente” na história de Welsh. No livro, Sick Boy, personagem de Jonny Lee Miller no longa, decide rodar um filme pornô, Rents (Ewan McGregor) é dono de uma boate de sucesso em Amsterdã, e Begbie (Robert Carlyle) acaba de sair da prisão.
— Exatamente como no livro, que traz os mesmos personagens, será um imperativo contar com os mesmos atores no filme. Se anteriormente minha câmera estava apontada para hedonistas que podiam se arriscar no limite de seus corpos, agora eles estarão experimentando ter quarenta anos de vida, exatamente como os atores. E lá estão eles, olhando para trás e pensando: mas eu fui mesmo capaz de fazer aquilo tudo? Eles agora estão com osteosporose e mancando, mas o que será que de fato aconteceu com eles? Quero fazer um estudo de personagem e também um novo jogo de espelhos com os atores em carne e osso enfrentando a passagem do tempo. Agora, não nos enganemos: nós todos, o diretor, o repórter e o público, também envelhecemos junto com o filme. E pergunto: o que aconteceu com vocês nestas duas décadas? Quero levar tudo isso para a tela”, diz, coçando as mãos em júbilo.
O repórter viajou a convite da Fox Films