CURITIBA - O diretor de teatro e dramaturgo carioca Roberto Alvim está sentado sob uma luminária no segundo andar do Espaço Cênico, um centro de ensaios e apresentações criado pelo ator Luís Melo, há anos sob os cuidados da produtora e atriz Nena Inoue. É numa das salas do lugar que Alvim estreia neste sábado sua mais nova criação, “Haikai”, uma das mais disputadas da Mostra Oficial do Festival de Curitiba 2013. Após encenar ali , em 2011, “Hieronymus nas masmorras”, de Luiz Felipe Leprevost, e “Como se eu fosse o mundo”, de Paulo Zwolinski, numa mostra paralela dedicada a novos autores do Núcleo de Dramaturgia do Sesi, que Alvim coordena há quatro anos na cidade, está será a primeira vez do diretor e fundador do Club Noir como atração da Mostra.
— Nena convidou-me para escrever um projeto e conseguiu patrocínio. O Leandro (Knopfholz), quando soube que estrearíamos numa data próxima ao festival, nos chamou — conta Alvim, referindo-se ao diretor do evento.
Logo após a mostra, Alvim rompe o hiato de três anos sem se apresentar no Rio — “Comunicação a uma academia” (2010), de Franz Kafka foi seu último trabalho na cidade — e encena o projeto Peep Classic Ésquilo a partir do dia 31 de maio, no Espaço Sesc. Antes, porém, ele estreia, também em maio, “Invasores”, no Sesc Pompeia (SP); em julho dirige Caco Ciocler e Juliana Galdino em “Kiev”, de Sérgio Blanco; e até o fim do ano trabalha sobre os três últimos escritos de Beckett, numa trilogia interpretada em solos por Nathalia Timberg, Juliana Galdino e “possivelmente a Vera Holtz”, ele adianta.
Gramática inventada
Mas agora a menina dos olhos é “Haikai”, primeiro texto de Alvim desde “Pinokio” (2010), que considera seu melhor trabalho entre as 19 peças anteriores. Repleta de neologismos, a dramaturgia de “Pinokio” era, ao mesmo tempo, afronta e um ato deliberado de desestabilização da língua como a conhecemos, reconhecemos ou compreendemos. Já em “Haikai” não há apenas neologismos, mas uma “nova língua, com uma gramática inventada”, diz Alvim.
— Não sei como surgiu, tem gente que fala sobre línguas ciganas, faz conexões com aramaico, iorubá, mas não tenho contato com o candomblé. Acontece que nesse caminho de invenção você esbarra em línguas arcaicas — diz.
No entanto, o português continua em cena, sobretudo no primeiro terço da peça, mas, pouco a pouco, o espectador assiste ao nascimento de palavras-enigmas. Uma dramaturgia onde palavras não entram em cena para prover sentido, mas, sim, “disparar intensidades”, diz Alvim.
— Esta peça tem jogos de falas pulsivas que produzem estados de tensão, que nos mantêm despertos — diz. — Não escrevo sobre ou a partir de mim mesmo, mas como uma liberação do eu, do que conheço. Por isso a escritura é uma morte múltipla do eu. É preciso tirar-se a si mesmo da cadeira quando se senta para escrever.
Em cena, vê-se o resultado de um trabalho de “três horas de escrita”, segundo Alvim, com três atores — Paulo Alves, Nena Inoue e Martina Gallarza — e estruturado em três momentos, seguindo a lógica das três frases que compõem o haikai, a sintética estrutura poética japonesa.
— No haikai, temos três frases distintas, autônomas, mas juntas elas provocam um desvelamento profundo sobre a existência. É assim que vejo essa peça. É como uma reverberação poética. Trata-se de síntese e amplidão. É preciso dar uma chance ao suficiente, o empilhamento é coisa do sujeito cultural neurótico.
Na primeira parte, são evocadas situações relacionadas a crimes, através de falas de interlocutores únicos, que relatam metades de histórias, já que as vítimas não estão presentes. Elas representam um outro que permanece invisível. Na segunda, medo e fascínio travam um embate mediante a aparição de fantasias sombrias relacionadas a monstros que visitam crianças, como “entidades sobrenaturais”, diz Alvim.
— Me interesso por esse estado de espanto infantil. É como uma porta que se abre, e por uma fresta você entrevê um mundo habitado por outras formas de vida.
E na terceira, há, enfim, a presentificação ou a “invocação”, como prefere Alvim, do que antes permanecia invisível.
— Há um triângulo no palco, porque se você invoca um demônio, não pode deixá-lo sair dali — diz. — Esse outro provoca um estrago nas nossas mentes. É da ordem do horror.
Mas antes do apocalipse, uma ressalva:
— Isso é só uma leitura possível da obra...
Na última segunda-feira, Alvim fez um ensaio aberto. Ao fim da peça, a reação foi a mesma com que já está habituado.
— É um total constrangimento. As pessoas não sabem o que dizer ou o que pensar. Porque não é disso que se trata — diz. —“Pinokio” era uma peça esquizofrênica, já “Haikai” é autista. É um sistema que não solicita e não pressupõe a participação do espectador para complementar qualquer coisa. Então as pessoas não sabem como reagir, o que é ótimo. É isso o que acontece quando você se depara com algo que não sabe o que é.
Reconhecimento à pesquisa estética
A presença de Alvim na Mostra Oficial, ao lado de Enrique Diaz, da Cia. Brasileira de Teatro, dos grupos Lume, Espanca!, Luna Lunera, Hiato e Balagan é significativa num ano em que o Festival de Curitiba dá um passo à frente no que se refere à sofisticação de seu olhar curatorial, que apostou em diretores e grupos com algumas das mais interessantes propostas teatrais no atual cenário brasileiro. A escalação de “Haikai” para a Mostra é sinal de reconhecimento à pesquisa estética burilada por Alvim à frente do Club Noir, assim como à sua contribuição como fomentador de novos dramaturgos na cena curitibana.
Como coordenador do Núcleo de Dramaturgia do Sesi, projeto criado há quatro anos com Marcos Damasceno, Alvim soma cem novos textos finalizados por novos autores após suas aulas. Muitos já foram apresentados na Mostra Novos Repertórios, criada em 2007 para dar visibilidade à produção curitibana em meio às mais de 400 peças que integram a mostra Fringe do Festival.
* O repórter viajou a convite da organização do festival