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Em individual, Marta Jourdan cria máquinas que alteram estados de matéria

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RIO - Em uma cultura que sempre suspeitou da matéria, as artes visuais ocupariam um lugar ambíguo e mal delimitado. Pertencendo ao mundo sensível com suas flutuações e armadilhas, caberia à forma estabelecer horizontes seguros.

Por séculos, a criação escultórica foi pensada segundo o modelo aristotélico, segundo o qual a matéria é o substrato passivo e inerte, precedido e atualizado pela forma. Admitir a inocência da matéria seria acolher seu devir, o fluxo ininterrupto que a tudo transforma e devora. Seria aceitar a metamorfose sem fim, a alteridade incessante, o permanente estranhamento.

A mostra individual de Marta Jourdan na Galeria Laura Alvim fecha o consistente trabalho de curadoria de Fernando Cocchiarale, à frente daquela instituição durante os últimos dois anos.

Suas “esculturas” não são questão de forma, mas de matéria e devir. A partir de “situações cotidianas”, como diz, a artista cria máquinas que alteram os estados da matéria, ou se utiliza de tecnologias da imagem para “perseguir o instante único” e “reproduzir o evento imperceptível ou o que é visto em frações de segundo”.

É assim que, sobre ferros de passar roupa aquecidos, água é gotejada, criando cogumelos de vapor e oxidando pictoricamente a superfície do metal.

Em “Líquidos perfeitos”, a água convoca o fogo e o ar, para desenharem labaredas no metal e nuvens no ar. Em “Zona de lançamento”, gotas d’água, sobre a lente de um retroprojetor, são ampliadas e projetadas nas paredes — em que zona intermitente se aloja o instante entre a queda d’água, a percepção e a aparição da imagem?

Com uma câmera de alta velocidade que registra até mil quadros por segundo, a artista filmou explosões repentinas e violentas, big bang dos universos cotidianos.

Em “Súbita matéria”, vemos os instantes estendidos, o lento estilhaçar de um jarro e de um copo, a dispersão das partículas de água (que se cristalizam na imagem); o jorro d’água sobre a mulher que toma chá na paisagem, as roupas pelo ar, o fogo conflagrando e dilacerando um casebre. “Súbita matéria” é o intempestivo ou tempo esculpido ou a revelação do infinitesimal segundo entre a irrupção do acontecimento e sua ruína, entre sua cosmogonia e sua morte.

Em “Óleo” (ouve-se também “olho”), um líquido viscoso, em um caldeirão sobre um motor, espelha aqueles que se debruçam sobre ele. Acionado, o cilindro gira por 23 segundos, distorcendo e absorvendo nosso reflexo em um redemoinho. Óleo/olho da matéria que nos olha de volta. Como um antigo ritual ao redor do fogo, que reunia as forças esparsas da natureza, ele funde nossas imagens em uma só, como um único espectro/corpo mundano e comum.

A sutileza das passagens

A artista não quer apenas congelar, estender, ou repetir o instante para confrontá-lo com a percepção sensorial e limitada do olhar. Busca a sutileza das passagens, a revelação do ínfimo devir, o entre-devires: entre os estados metamorfoseados da matéria; entre criação e aniquilamento; entre o acontecimento e sua imagem; entre a imagem da matéria e a matéria da imagem; entre o efêmero e o imprevisível, entre tempos e fugas. Ou, como escreve Cocchiarale, entre “o instante da experiência e o instantâneo da fotografia” — entre a captura do agora e sua inelutável esquiva.


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