Quantcast
Channel: OGlobo
Viewing all articles
Browse latest Browse all 32716

Alan Ayckbourn, um autor marcado por luz e sombras

$
0
0

RIO - Aos 73 anos, Alan Ayckbourn tem 74 peças escritas. É como se tivesse feito uma peça por ano — e ainda seria preciso contar a gestação para fechar a conta, claro. Mas a primeira delas só veio aos 20 anos, “The square cat” (1959), o primeiro hit foi “Relatively speaking” (1965), e então vieram prêmios (Tony e Laurence Olivier) e sucessos em série que o estabeleceram como o autor mais produtivo e encenado da Inglaterra, especialmente em Londres, uma das cenas mais efervescentes e disputadas do mundo. A escrita surgiu quando o ator que ele pretendia ser tomou consciência de suas limitações técnicas. Fora de cena, virou diretor e dramaturgo, e as lacunas de seus recursos físicos de expressão foram preenchidas pela imaginação.

Prestes a iniciar a escrita de mais uma peça e a dirigir seu mais recente texto, “Surprises” (2012), numa temporada americana, Ayckbourn também verá, em 2013, outra obra da nova safra ser levada aos cinemas, “Life of Riley” (2011), que será adaptada por Alain Resnais — o diretor francês já filmou “Intimate exchanges” (1982) e “Medos privados em lugares públicos” (2004).

Conhecido no Brasil a partir de “Absurda pessoa”, dirigida em 1975 por Renato Borghi, o inglês ainda é pouco encenado no país, especialmente no Rio — as últimas duas foram “Casamentos” (2001) e “Tempo de comédia” (2011). Após montagens espaçadas, no fim dos anos 2000 Ayckbourn ganhou entusiastas, como o ator e tradutor Eduardo Muniz e o diretor Alexandre Tenório, assim como a atriz Denise Weinberg. Desde 2009, eles passaram a traduzir e a montar uma série de obras de Ayckbourn. A mais recente é “Isso é o que ela pensa”, que estreou em São Paulo em 2012 e acaba de chegar ao CCBB do Rio. Ainda esse ano, Muniz trará à cidade uma nova montagem para “Absurda pessoa”.

Em “Isso é o que ela pensa”, em cartaz no Rio, vemos uma mulher que, após um acidente, cria e passa a se relacionar com uma família imaginária, que é o oposto da sua real. O que o levou a escrever a peça?

Estava interessado em explorar os truques que a nossa mente utiliza, especialmente uma consciência alterada, “danificada”, que coloca a realidade inteira em questão. Quis escrever sobre uma pessoa cujas percepções sobre o que é real e o que é fantasia se tornam cada vez mais confusas, até o ponto que se torna impossível discernir uma da outra.

O que ainda o fascina nesse texto, o que há de único nele? Foi a primeira vez em que o senhor usou uma narrativa em primeira pessoa, um ponto de vista mais subjetivo...

O mais incomum nesse texto é a narrativa em primeira pessoa, e uso esse termo, incomum, em vez de único, porque é sempre perigoso reivindicar, no teatro, que algo seja único. Sempre alguém vai dizer que isso já foi feito. Não há nada novo no teatro. Usei essa voz na peça para tentar envolver e tornar o público mais próximo da protagonista, e oferecer a eles uma experiência direta.

Alguns de seus textos tratam do fim da juventude ou de uma maturidade prematura. Certa vez o senhor disse que “Game plan” (2001) era o seu trabalho mais autobiográfico, sobre um jovem que enfrenta uma mãe maníaco-depressiva...

Sim, há muito de mim nele, eu também tive de lidar com um ambiente familiar caótico, e acabei me tornando um tanto controlador. Lembro de levar meus professores às lágrimas com meu sarcasmo precoce. Então o que acontece é que muitas mães usurpam o direito das crianças de desenvolverem uma vida emocional. Se a sua mãe começa a gritar e colocar tudo abaixo e, em seguida, passa a rir histericamente, você tende a se tornar um pouco desligado. Mas o que eu acho é que não temos permitido que as crianças tenham e vivam a infância. Transformamos eles em miniadultos e consumidores em potencial. De alguma forma, estamos tirando a magia das coisas.

Mas como a sua relação com ela influenciou e pode ser observada nas histórias?

Minha mãe me deu mais complexos, fobias, preconceitos, inspiração e insights que qualquer autor poderia esperar de seus pais. Ela era excêntrica, para dizer o mínimo. Provavelmente, você acha que todas são assim. Mas então você descobre que a sua é completamente louca. Digo, absolutamente extraordinária, errática. Na época em que tomei consciência dela, meus pais estavam se separando. Ela arremessava pratos e gritava: “Todos os homens são uns canalhas!” Eu tinha apenas 7 anos, não tinha ideia de que eu iria crescer e também me tornar um homem. Então eu a usei bastante, sim, mas apenas nos personagens mais excêntricos e marginais.

Após 74 peças o que ainda o motiva a escrever?

Ainda sinto que caminho sobre um terreno completamente novo, e quando percebo isso sou tomado por uma sensação muito boa. Às vezes você escreve uma peça e sabe que uma parte vem dali, outra daqui, com 74 peças você acaba esbarrando ocasionalmente com os mesmos personagens, mas mesmo quando isso ocorre sinto que estou consolidando tudo.

O senhor costuma dizer que toda boa comédia deve ser, no fundo, séria, e que todo drama que valha a pena deve incluir um sorriso, mas que seja irônico. Como avalia sua obra como um todo, quais os temas dominantes, o que o mobilizou a escrever ao longo desses anos todos?

Acredito que não pode haver luz sem sombras. Mas acho que tenho a sorte de que o ponto de vista a partir do qual escrevo tende a ser bem-humorado. Mas sobre o que me motiva... Até hoje só escrevo sobre um assunto que me move pessoalmente. São dilemas privados, particulares, mais do que assuntos de interesse global. Nas raras ocasiões em que abordo temas mais amplos, eles são observados a partir de uma perspectiva individual.

O senhor começou a sua carreira teatral como ator. O que o fez optar pela escrita, e depois pela direção?

Stephen Joseph (diretor artístico do Scarborough Theatre até 1967, data de sua morte, quando o teatro passou a ser dirigido por Ayckbourn) foi o meu mentor, e certa vez disse que se eu queria papéis melhores deveria escrevê-los. Então fiz “The square cat” e comecei a dirigir. Sempre escrevi o que quis, e depois compartilhava com os atores. Nunca escrevi para um determinado ator, para agradar ao público e muito menos aos críticos. Seria fatal.

O teatro, a escrita ou a leitura fizeram parte da sua infância? Foram determinantes de algum modo?

Meus avós eram atores, e a minha mãe escrevia histórias curtas para revistas, então a escrita já estava no meu sangue. Atuar e escrever se moldaram naturalmente, até que eu descobri um talento mais limitado como ator e passei a dirigir e a escrever.

O senhor nunca se desviou do teatro, é absolutamente devotado às peças e não escreve para cinema, TV, ou outros meios. Por quê?

Escolhi o teatro para contar as minhas histórias porque foi onde cresci. Conheço-o intimamente, porque já trabalhei em cada área. Então não escrevo poemas, novelas, romances, apenas teatro. Alguns dizem que o teatro é um meio limitado, mas para mim, que sou um autor, ele ainda contém e oferece infinitas possibilidades.

Mas, para o senhor o que torna o teatro insubstituível?

O que está acontecendo agora é apenas agora, nada foi feito ontem. E isso é muito único. Estamos criando uma sociedade em que as pessoas se comunicam apenas com elas mesmas, como nunca antes, então o único momento em que nos encontramos presencialmente hoje em dia é nos teatros ou nos restaurantes. Penso no dia em que o teatro será o único lugar onde pessoas estranhas poderão se encontrar e assistir ao vivo a outras pessoas estranhas dividindo juntas os prazeres e problemas de sermos apenas seres humanos.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 32716


<script src="https://jsc.adskeeper.com/r/s/rssing.com.1596347.js" async> </script>