Quantcast
Channel: OGlobo
Viewing all articles
Browse latest Browse all 32716

Opinião: Dorrit Harazim escreve sobre Emmanuelle Riva e sua atuação em 'Amor'

$
0
0

RIO - Quando pisar no tapete vermelho de Holywood, esta noite, a francesa Emmanuelle Riva merece eclipsar qualquer concorrente. Não como favorita ao prêmio de melhor atriz pela atuação no perturbador filme “Amor”, de Michael Haneke. É numa categoria maior do que a de atriz: a de mulher. Uma mulher que hoje completa 86 anos (tinha, portanto, 85 quando desempenhou o estupendo papel) e cuja beleza desconcerta, por deixar intactas as marcas da vida.

De quebra, ela é capaz de arrasar também no quesito elegância, embora isso já seja de regra. Salvo surpresas, costuma ser abissal a distância entre o que adorna a silhueta de uma europeia e o que é envergado por atrizes americanas.

Emmanuelle Riva nasceu na região de Vosges, Nordeste da França, no mesmo ano da fundação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em Los Angeles. Veio a um mundo do qual poucos bípedes ainda guardam lembrança viva — em 1927, Johnny Weissmuller batia um recorde de natação atrás do outro, Charles Lindbergh atravessou o Atlântico em voo solo, Trotsky foi expulso do Partido Comunista soviético e Fritz Lang estreava o clássico “Metrópolis”.

Filha de família modesta, trabalhou como costureira até aportar em Paris para tentar a carreira de atriz. Irrompeu com estrondo no mundo do cinema em 1959, quase do nada, aos 32 anos. Como a heroína sem nome e presença sublime de “Hiroshima Meu Amor”, de Alain Resnais, cativou instantaneamente o público. No papel de uma atriz que está em Hiroshima e vive um amor fragmentado com um japonês, assombrou de imediato uma geração inteira de cinéfilos. E o filme, com roteiro de Marguerite Duras sobre lembranças e esquecimento, abriu caminho para a Nouvelle Vague francesa. Foi considerado pelo diretor Eric Rohmer como “o primeiro filme moderno desde o fim do cinema mudo”.

O austríaco Michael Haneke, à época um rapazote de 17 anos, ficara impactado. Não só ele. Difícil não lembrar da dicção inimitável da atriz naquele filme — a cadência quase hipnótica de frases curtas repetidas à exaustão, formando quase um poema concreto. “Fiquei fissurado”, relembra o diretor de “Amor”, “mas a perdi de vista”.

Não que Emmanuelle tivesse se escondido do mundo pelos 50 anos seguintes. Filmou esparsamente, com hiatos de 10, às vezes 20 anos, selecionando a dedo diretores e roteiros de seu gosto. Desempenhou papéis pouco convencionais com inteligência despretensiosa. Nunca fez filmes comerciais. À medida em que começaram a escassear papéis para mulheres de meia-idade, bandeou-se com encanto para o teatro. “Como recusei alguns papéis, pararam de me chamar. E assim você forma um vazio, acaba esquecida”, relembrou em entrevista recente. Mas nunca deixou de ser um talismã bem guardado do cinema francês.

Ao ler o roteiro que Haneke lhe fizera chegar, Emmanuelle Riva acendeu. Foi atraída pelo olhar nada sentimental do texto sobre a velhice e aceitou submeter-se a um teste de elenco. Não teve para mais ninguém. Segundo contam o diretor e a atriz, bastou uma cena e ambos souberam que o papel era dela. E assim, quase sem avisar, a inconstante jovem amante de Hiroshima reaparece em “Amor” como uma octogenária em declínio. Pela segunda vez, ilumina a tela de forma inesquecível.

Na vida real, a atriz vive num ambiente não tão diferente do retratado no filme — o mesmo apartamento parisiense que ocupa há 50 anos. Sua vida foi construída em torno de livros, amigos e fotografia. Não tem filhos, nunca casou e seu último companheiro morreu há quatorze anos. Indagada pelo semanário britânico Observer se prefere ser chamada de “Mademoiselle”, como Catherine Deneuve (69 anos) e Jeanne Moreau (85), escolheu “Madame”. “Acho mais apropriado e charmoso”, explicou.

Emmanuelle Riva não caiu em nenhuma das armadilhas da idade. Se, como já disse Mark Twain, rugas deveriam indicar apenas onde houve riso, no caso da aniversariante de hoje elas indicam onde houve e onde ainda há vida. Percorreu com norte próprio a passagem do tempo sem romantizar a velhice como “melhor idade”. Deixa o figurino de vovó moderna que faz parapeito e asa-delta para suas conterrâneas. E acompanha com curiosidade a obsessão por saúde e longevidade, visível num passar de olhos por qualquer banca de jornal.

“Vou gostar se ainda me chamarem para atuar mais uma vez. Mas se não chamarem, não vou me aborrecer. Continuo viva e gosto dessa sensação. Acho que vou gostar da vida até a morte”, explicou no ano passado, quando “Amor” ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Em Los Angeles, esta noite, ela será a atriz mais velha já indicada pela Academia. Uma linda mulher, a cada nova geração.

* Dorrit Harazim é jornalista e escreve na seção “Opinião”, do Globo.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 32716


<script src="https://jsc.adskeeper.com/r/s/rssing.com.1596347.js" async> </script>