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Livro póstumo traz ensaios e entrevistas do historiador Tony Judt, morto em 2010

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Tony Judt (1948-2010) foi um dos mais importantes historiadores do final do século XX. De família judia com forte apego à cultura e ao mundo das artes, e raízes na Rússia e Romênia, Judt pode bem ser considerado um dos últimos luminares da vasta e brilhante cultura judaica. Foi esta a “civilização”, em especial na Europa Central (embora ele mesmo tenha nascido na Inglaterra), que o Shoah atingiu no século XX. Desse mundo, que o autor diz ser ainda do século XIX, herdou uma profunda formação em literatura em língua alemã e eslavas, as quais leu e trabalhou no original, além de uma impressionante erudição em artes e filosofia.

Judt, como milhares de outros intelectuais judeus, foi devastado pela concretude do Holocausto, que pesa como um marco final nesta civilização judaica centro-europeia. Desde então, a presença da contribuição para a História migra para os países de língua inglesa (como no caso de Eric Hobsbawm ou George Mosse). Na Inglaterra, em especial na periferia de Londres, e depois no King´s College, o jovem Judt teve sua formação e combinou a cultura continental europeia com a erudição universitária britânica, que se refletiu enormemente na sua obra mais famosa, “Pós-guerra”, de 2005.

Em “O chalé da memória”, delicado e sensível estudo das relações entre História e memória, escrito em 2010, quando os sinais da esclerose amiotrófica tornaram-se evidentes e dolorosos, Judt dedicou-se a rememorar, como um náufrago que se lança a uma tábua de salvamento. Por saber desde cedo do final inevitável, “O chalé da memória” não deveria ser para ele um castelo ou uma fortaleza. Era tão somente um exercício de manter o corpo tão vivo como o brilho de sua inteligência. Pensávamos que encerrava-se assim a obra do historiador, como uma despedida. Mas eis que surge, em grande parte pelas mãos e pela dedicação do amigo e colega Timothy Snyder, catedrático de História de Yale, um novo livro de Tony Judt.

O retorno, por assim dizer, de uma voz tão lúcida, sem peias ou medos de ferir velhos ou novos tabus, e ao mesmo tempo tão culta, é uma imensa alegria. O “novo” livro de Judt, na verdade uma sucessão de conversas, resenhas e artigos inéditos, pontuados pela organização de Snyder, é bastante original e diferente do conjunto de sua obra. Não se trata de “uma história” sobre um dos seus temas prediletos. Trata-se, em verdade, de um livro de leitura, ao menos, dupla. De um lado — o mais claro, geral e de interesse para qualquer um que pense e reflita o mundo em que vivemos hoje —, estamos em face de um livro de polêmicas sobre a ética e os valores, dentre os quais o mais importante é a liberdade.

Assim, o belo título “Pensando o século XX” traduz o conteúdo dos diálogos de Judt com Snyder, trazendo à cena as questões fundamentais daquele período. Para Judt, precisamos sublinhar, o século XX é fenômeno cultural, social e político, e não expressão cronológica. Assim, os flashbacks no século XIX, a busca dos homens e processos que marcaram o próprio século XX, são constantes. Nomes conhecidos, como Karl Marx, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, Charles Darwin, e pensadores utópicos, pacifistas e cultivadores da violência — e seus debates sobre os caminhos do socialismo, do nacionalismo e democracia e as possibilidades de erros e de desvios brutais — estão presentes no século XX de Judt.

JUDT CRITICA PRÁTICAS ATUAIS DE HISTORIADORES

Da mesma forma, John Keynes, inevitável para tratar da crise mundial do capitalismo, cuja explosão Judt analisou em 2008, se faz um autor e político indispensável, onipresente no momento atual. Judt, sempre sem peias, coloca frente à frente Keynes e Friedrich Hayek para concluir que a suposição clássica de harmonia e equilíbrio no capitalismo, o velho dogma da mão invisível, é, hoje mais do que nunca, somente isso: um dogma. Os caminhos da servidão, alfineta Judt, são múltiplos e seu ponto de partida residia na mesma Viena de Hitler e do próprio Hayek.

A análise de Judt para proposições neoliberais, que para ele são certamente ditas como “clássicas”, nada tendo de “neo”, ignoraram o emprego, o trabalho e as pessoas em geral, não sendo estranho que o personagem configurador do século XX, Adolf Hitler — ou de sua ruptura com o século XIX —, seja uma aparição ao final desta trajetória. Mas há ainda outras leituras deste último livro de Judt: vamos nos apoderar aqui somente de uma, dentre outras possíveis. Trata-se, desta feita, do Judt crítico da História, do historiador e do fazer História.

Nesta versão, “Pensando o século XX” é insuperável para todos que militam nas oficinas das ciências humanas. O autor, professor de Cambridge, Oxford e Berkeley, revolta-se contra uma história cada vez mais anoréxica, esquálida e sem conteúdo. Um estruturalismo que se basta e que se contenta com o debate, único, com os seus colegas iniciados e tendo como destino final a prateleira empoeirada. Ele mesmo um militante sionista marxista na juventude, crítico do marxismo esclerosado do pós-guerra e defensor da liberdade e das condições de partida iguais (incluindo aí uma vasta polêmica sobre as políticas do Estado de Israel), critica o caráter autoesterilizante do fazer História hoje.

Numa bela metáfora, reconstruída de um saber popular antigo, Judt nos diz que hoje o historiador diante de seu objeto não vê nem árvores nem bosques, só se interessa pelas trilhas. E, então, parte para desvendar trilhas quando nada sabe das árvores que o ladeiam, adentrando um bosque plenamente invisível, em busca de trilhas que ele mesmo construiu.

Numa História onde o conhecimento dos fenômenos e processos, onde cultura e arte definham, nada pode brotar como caminho, a não ser o autocontentamento do historiador. Tony Judt, sob diversas formas, foi uma árvore solitária. Frondosa, aberta sobre uma campina muitas vezes vazia. Esperemos que a árvore e suas sementes frutifiquem.

*Francisco Carlos Teixeira da Silva é historiador da UFRJ e UCAM


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