Geneton Moraes Neto brinca ao dizer que é vizinho dele mesmo. No prédio onde mora, no Rio, o jornalista mantém outro apartamento abarrotado de livros, fitas, recortes, LPs, CDs e até uma máquina de escrever que ganhou aos 12 anos de idade. Em meio às preciosidades guardadas ao longo de mais de 40 anos de profissão, são mais de 200 horas de áudios, que incluem, por exemplo, um longo depoimento de Pete Best, o primeiro baterista dos Beatles, uma entrevista com Anthony Burgess, autor do clássico “Laranja mecânica”, e outra com o agente do FBI encarregado de vigiar Lee Harvey Oswald, o responsável pela morte do presidente americano John Kennedy. Geneton, de 57 anos, ainda conserva a gravação da primeira conversa com Caetano Veloso, em 1973, feita quando o repórter ainda era adolescente.
— Uma das funções do jornalista é produzir memória. Sempre tive essa obsessão de preservar tudo. Poderia ter transcrito e apagado, mas guardei. À primeira vista algo pode até parecer banal, mas com o tempo ganha peso. É quase um Cedoc paralelo — compara, com seu sotaque pernambucano, referindo-se ao centro de documentações da Globo e da Globo News, onde ele apresenta o “Globo News Documento” e o “Dossiê Globo News”.
E foi dessa “bagunça” particular que saiu o material para o primeiro documentário produzido por Geneton para o canal. A ser exibido no sábado, às 20h30, “Garrafas ao mar: a víbora manda lembranças” relembra a trajetória de Joel Silveira, para Geneton, “o maior repórter brasileiro”. Com narração do cantor Fagner e leituras de Carlos Vereza e Othon Bastos, o programa relembra a figura do ferino jornalista por meio de imagens, áudios, depoimentos e trechos de conversas dos dois, que mantiveram uma amizade por 20 anos, até a morte de Joel, em 2007.
— Conheci Joel porque tinha curiosidade de entrevistá-lo. Tivemos uma empatia imediata, e nossa relação foi de mestre e discípulo. Sempre gravava as nossas conversas e tinha uma dívida com ele. Com o documentário, me sinto pagando uma parte dela — afirma Geneton, apelidado de “coisa investigativa” por Joel.
Além de reavivar a memória do espectador, Geneton. espera que sua produção seja vista — e valorizada — por jornalistas e estudantes de comunicação. E, ainda, que ajude a levantar uma questão que ele mesmo ainda tenta compreender:
— O que deu errado para se perder o espaço para um repórter como Joel Silveira? Alguém que conseguiu dosar como ninguém literatura e jornalismo. Alguém que não devia nada a Gay Talese ou Tom Wolfe — dois ícones do movimento chamado novo jornalismo.
Talvez uma das respostas esteja na chamada “ditadura da objetividade”, Geneton observa. Um movimento que surgiu na década de 1950 para atenuar a literatura nas páginas diárias, mas que, ao mesmo tempo, cerceou o jornalista autoral, virulento, o humor ferino e a descrição em seus mínimos detalhes.
— Talvez seja a hora da volta. Os jornais precisam se reinventar, é uma tristeza. Se um repórter for falar com o presidente da República, e ele der um soco na mesa dizendo que não vai ter entrevista, essa matéria certamente será derrubada. Mas para Joel e Rubem Braga isso renderia um lead inspirado. É certo que há notícias diretas, mas sempre haverá espaço para os perfis, as matérias bem cuidadas — pontua o jornalista que, embora esteja em um momento televisivo, conta que sacia sua vontade de escrever através dos livros e do site geneton.com.br/blog.
Além de escrever, ler é um dos grande prazeres dele, que se define como “anárquico”, e conta devorar biografias de célebres jornalistas. Boa parte do seu tempo livre, aliás, é passado em meio aos livros.
— Compro mais do que consigo ler — avalia, acrescentando que a leitura é uma obrigação de quem busca aprimorar a escrita.
— É aquela velha fórmula: só escreve bem quem lê. E escrever bem não quer dizer algo rebuscado, mas digitar um texto eloquente, interessante e sem erros de português. Não dá para escrever “o óculos”. Somos os cães de guarda da língua. Tenho medo de virar um velho rabugento, mas houve, sim, um empobrecimento dos textos. Paulo Francis tinha um estilo. Você poderia não concordar com nada que ele escrevia, mas não conseguia tirar os olhos de seu texto — diz, destacando que, além disso, um repórter tem que estar atento ao que acontece nas ruas.
Grande parte das lições jornalísticas aprendidas por Geneton, ele reitera, vem dos anos de convivência com ícones do nosso jornalismo e, principalmente, com Joel. Até doente no hospital, o repórter passava o tempo contando os aviões que cruzavam o céu, lembra Geneton. Para ele, exemplo do fogo que o jornalista não pode deixar o cotidiano apagar:
— Eu fui atrás de tudo que quis fazer, não esperei ninguém me pedir. Conversei com os jogadores brasileiros que perderam a Copa de 1950 por conta própria. Não existe falta de assunto, há jornalista entediado. E repórter tem que ser chato, ficar atrás, não dar o assunto por encerrado.
Principalmente nesta era digital, onde as manchetes circulam em questão de segundos. Por mais que a notícia apareça rapidamente em blogs ou nas redes sociais e seja divulgada não necessariamente por jornalistas, Geneton argumenta que, sim, o profissional ainda possui um papel essencial: o de organizá-la para que se torne inteligível.
— A gente tem que manter os olhos arregalados de quem está vendo tudo pela primeira vez. Isso não significa ser ingênuo. Sair da redação derrubando pauta é a receita do fracasso — ensina, relembrando seus primeiros contatos, mesmo que involuntários, com o mundo jornalístico, ainda na infância: — Era viciado em futebol de botão. Um dia, criei um noticiário, com colagens. Escrevi na manchete: “Incrível, fantástico, extraordinário: Vasco empatou com o Palmeiras”. Alguém me chamou e disse que não havia nada de excepcional naquilo. Então percebi que não dava para ser diretor de time e editor de jornal.