RIO - A vida é dura no Mali. A região norte do país africano se encontra sob o controle de extremistas islâmicos, e há relatos desconcertantes de execuções, além do recrutamento forçado de crianças para combater as forças do Exército. Sem previsão para o desfecho do conflito, a ONU estima que 400 mil pessoas vão deixar o local rumo a países vizinhos nos próximos meses. Mas a música é boa no Mali, nação que deu ao mundo artistas como Salif Keita, Toumani Diabaté, Tinariwen, Ali Farka Touré, Fatoumata Diawara e Amadou e Mariam, que por sua vez influenciaram gente como Ry Cooder, Damon Albarn, Bonnie Raitt, The Magic Numbers e Johnny Marr, entre outros.
Não por acaso, portanto, o documentário “Music in Mali”, em fase final de produção, tem o subtítulo “Life is hard, music is good” (“A vida é dura, a música é boa”). Dirigido pelo americano Aja Salvatore, um especialista na região, para onde já viajou mais de dez vezes, o filme mostra o dia a dia de músicos e demais artistas do país, em meio a um dos mais áridos cenários do continente africano. Previsto para ser finalizado no segundo semestre deste ano, a tempo de se candidatar a uma vaga no festival de Sundance de 2014, ele revela que, apesar de banida pelo fundamentalismo dos rebeldes (que proibiram até ringtones), a música do Mali segue como uma das mais ricas e inspiradoras do planeta.
— Não quis fazer um filme sobre o Mali em cima dos estereótipos associados ao continente africano, como a pobreza e a violência. Essas coisas já surgem naturalmente assim que você começa a gravar — explica Salvatore, que mora em Los Angeles e é um dos fundadores da gravadora KSK Records, especializada em sons africanos. — O Mali teve um dos mais ricos impérios da África, e sua música, que é profundamente enraizada na população, deu origem a muitos dos sons que ouvimos, como o blues, o jazz e o hip-hop. É uma região que costuma ser citada e saudada, mas que nunca teve um registro cinematográfico à altura da sua importância.
Músico e DJ também, Salvatore teve a ideia de fazer o documentário há sete anos, depois que já tinha viajado ao país por duas vezes, tocando e fazendo contato com artistas locais para a sua gravadora, que criou em parceria com outro músico, o brasileiro radicado em LA Rafael Tudesco. De tanto viajar pelo país, Salvatore acabou aprendendo o idioma local, o bambara, uma ferramenta importante para abrir portas e livrar sua equipe de alguns problemas.
— Fomos parados diversas vezes pela polícia da última vez em que estivemos lá, há poucas semanas, mas sempre éramos liberados quando descobriam que o Aja falava a mesma língua — conta Tudesco, que acompanhou as filmagens como técnico de áudio.
Ao longo das gravações, Salvatore e sua equipe viajaram pelo país — onde as fitas cassete ainda são a principal forma de consumo e trocas musicais —, embrenharam-se pelo interior, assistiram a rituais de dança, viram inúmeros shows e tiveram contato com artistas como Khaira Arby, uma das estrelas do “desert blues”. Durante uma viagem ao exterior, ela teve a sua casa invadida pelos rebeldes, seus instrumentos destruídos e foi ameaçada de ter a língua cortada se continuasse a cantar na região (ela é do norte).
— Essa história foi realmente impressionante — conta Salvatore. — Khaira hoje está refugiada no sul do país e impedida de voltar à sua casa. Mas o que todos dizem é que esses rebeldes não passam de gângsteres movidos a cocaína, desprovidos de qualquer ideologia, além da vontade de impor o terror a um povo que é muito pacífico, capaz de se entender apesar das diferentes etnias existentes no país. Estávamos na capital quando as tropas francesas começaram a intervir no conflito e, apesar da tensão, as pessoas nas ruas repetiam a frase “fight is no good” (“brigar não é bom”), como se fosse um mantra. A vida é realmente dura no Mali, mas a música e o povo são fascinantes.