RIO - O silêncio da mata é interrompido por obras ao redor do Museu Casa do Pontal, no Recreio dos Bandeirantes. Em dois anos, a vista das montanhas também será impedida por prédios de oito andares da Vila de Mídia das Olimpíadas de 2016, que abrigarão os jornalistas e depois serão ocupados por apartamentos privados. Apesar de lamentarem, os funcionários do museu já se conformaram com o fim do silêncio e da vista. Mas não com o risco de inundação que, com os novos edifícios, ameaça as cerca de 8.500 obras do mais importante acervo de arte popular do Brasil, parte dele tombada em 1991.
Enquanto se reúne periodicamente com as construtoras e aguarda da prefeitura uma definição — há três anos o prefeito Eduardo Paes fez um convite público de transferência do acervo para um galpão na Zona Portuária, agora ocupado pela Vila Olímpica —, a Casa do Pontal continua organizando exposições pelo Brasil e pelo mundo, começou uma série de documentários sobre arte popular e mantém em sua coleção nomes como Mestre Vitalino, Mestre Galdino, Adalton e Zé Caboclo — cuja obra inspirou José Saramago a escrever o romance “A caverna”. Eles estão na mostra “O Brasil na arte popular”, aberta neste fim de semana no Sesc Belenzinho, em São Paulo, com cerca de 400 trabalhos de 51 artistas, de 12 estados brasileiros.
— O acervo tem obras das décadas de 1940 e 50, e seus principais artistas já morreram. Ele precisa ter garantia de risco zero — afirma Lucas Van de Beuque, coordenador de projetos da Casa do Pontal.
— Além disso, é difícil manter a integridade das obras, que são feitas de materiais frágeis — diz a antropóloga Angela Mascelani, curadora e diretora do museu.
A paisagem no entorno da Casa do Pontal hoje é totalmente distinta da de 40 anos atrás, quando o francês Jacques Van de Beuque, avô de Lucas, comprou um sítio na zona rural do Recreio dos Bandeirantes para guardar sua coleção de arte, iniciada em 1951. Aberta ao público em 1986, com 4.500 peças, o espaço nunca teve inundações até abril de 2010, quando o terreno ficou tomado por 50 centímetros de água, durante dois dias. Já era o efeito do Projeto de Estruturação Urbana (PEU), que em 2009 deu permissão à construção de edifícios de até 18 andares nos 52 km² da Região das Vargens.
Com os novos parâmetros urbanísticos vieram aterros e a interrupção de canais de drenagem. Em novembro de 2013, o prefeito suspendeu as licenças de obras na área por 180 dias — medida prorrogada, há duas semanas, pelo mesmo período. Entretanto, a exceção são as construções relacionadas “direta ou indiretamente” às Olimpíadas. Elas continuam em andamento, como a Vila de Mídia.
Quando o sítio foi comprado, em 1974, a região de charco era um descampado repleto de canais. Colorista dos projetos de Roberto Burle Marx ao chegar ao Brasil, quando fugiu de um campo de trabalho forçado na Alemanha, nos anos 1940, Jacques Van de Beuque aos poucos criou os jardins da Casa do Pontal no terreno de cinco mil metros quadrados. Apesar de os índices pluviométricos da área já serem então um dos mais altos do Rio, eles sempre foram preservados, até a enchente de 2010.
No início deste ano, após o nível de água nos fundos da casa subir mesmo sem chuvas, as obras do Pontal Oceânico — o bairro que começou a surgir com os novos empreendimentos de cinco construtoras — pararam por dois dias, para a desobstrução de canais e a instalação de bombas de escoamento no terreno do museu, que ficará a mais de um metro abaixo do nível do bairro.
Por meio de sua assessoria, as construtoras Calper e RJZ Cyrela, responsáveis pelos prédios da Vila de Mídia, informam que os projetos foram “aprovados pelos órgãos competentes”. A RJZ Cyrela afirma ainda que “há manutenção constante da vala de escoamento do bairro”.
A Rio Águas, também por meio de sua assessoria, sustenta que, além da desobstrução temporária, o órgão tem um projeto definitivo de drenagem para a área, que será exigido para a concessão do habite-se. Depois de analisar o projeto, a pedido do museu, o engenheiro Luiz Cezar da Veiga Pires, especialista em obras hidráulicas, diz que ele não pode conter as inundações.
— A empresa contratada pelo empreiteiro definiu a dragagem apenas para receber o que for drenado nos empreendimentos, não para resolver o problema das enchentes. Os riscos de alagamento continuam — diz Veiga Pires. — Além disso, não levaram em consideração a sobrelevação de águas no Canal de Sernambetiba. Sem obras neste canal, as soluções serão sempre paliativas.
O convite de Eduardo Paes para que a Casa do Pontal se instalasse na Gamboa, em 2011, ainda era esperança do museu — que na época encomendou um projeto de arquitetura. Procurado pelo GLOBO, o prefeito informou, por meio de sua assessoria, que “continua com a intenção de passar o acervo do museu para o Porto, mas que agora isso não é possível porque os galpões estão sendo usados pela Vila Olímpica”.
Enquanto aguardam uma solução definitiva para o museu, Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque continuam organizando exposição itinerantes, além de receber mostras temporárias, desde 2008, no anexo da casa, com diálogos entre arte popular e arte contemporânea.
Além de ser vista na exposição permanente da Casa do Pontal, a coleção tem percorrido cidades do país e do exterior com a exposição “O Brasil na arte popular”, que, antes de chegar ao Sesc Belenzinho, em São Paulo, já passou por Brasília — onde reuniu 1.500 peças, no Museu Nacional —, Rio, Lisboa e Assunção.
Com curadoria de Angela, a mostra percorre o cotidiano, as festas, os costumes e o imaginário populares, destacando os artistas individualmente, mas também os centros de produção, como o Alto do Moura, em Pernambuco, com a cerâmica de Mestre Vitalino, Manuel Eudócio e Zé Caboclo; o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, com as bonecas de Dona Izabel e Noemisa Batista; e Juazeiro do Norte, no Ceará, terra de Nino, um dos primeiros escultores locais, que, dizem os moradores, trocava obras por comida.
Segundo Angela, Juazeiro do Norte é hoje um dos maiores polos de produção de arte popular do país. Foi lá onde ela e Lucas dirigiram o piloto de “O Brasil na arte popular”, documentário em episódios que negociam para exibição na TV, em parceria com a produtora Titânio. O piloto, com 28 minutos, será exibido pela primeira vez na mostra em São Paulo. Filmado no ano passado e neste ano, ele é conduzido por Nilo, um dos artistas populares locais, e destaca as festas e o caráter religioso da cidade fundada por Padre Cícero.
— Padre Cícero organizou a cidade nos moldes das corporações de ofício medievais, e estimulou o desenvolvimento da produção artesanal e de utensílios. A arte popular ali começou a surgir com a busca por lembranças das romarias, e também porque todos levam imagens para fazer promessas, os ex-votos, muitos esculpidos em madeira — conta Angela. — Ao contrário da arte popular do resto da América Latina, a brasileira tem uma dinâmica de mudança muito grande, com readaptação dos temas ao longo do tempo.
Apesar de contextualizar a produção nas condições históricas e socioeconômicas locais, o filme se concentra nos artistas de Juazeiro, que, além de contarem histórias da cidade, como o temor de Lampião por Padre Cícero, mostram uma consciência que nem sempre esteve ali: a de que fazem mais do que artesanato.
O Alto do Moura, o Vale do Jequitinhonha e o Recôncavo Baiano serão as paradas dos próximos filmes, que serão exibidos em exposições futuras.
— A série propõe aos visitantes uma viagem pelo Brasil através da arte popular — diz Lucas.