RIO - Numa manhã de julho do ano passado, a curadora-assistente do Museu de Arte do Rio Clarissa Diniz foi com o artista plástico Yuri Firmeza até o Morro da Providência, no Centro, catar entulhos para a mostra “Turvações estratigráficas”, que ele inauguraria em breve na instituição. Era a parte prática do trabalho, que propunha uma comparação crítica entre o material arqueológico do período colonial encontrado em escavações na região portuária — pedaços de louças, moedas e artefatos de escravos — e o material surgido de “escavações contemporâneas”, como as decorrentes de remoções feitas pela prefeitura na região. Naquele dia, portanto, recolheriam tijolos quebrados, pedaços de portões, garrafas, pentes de plástico, gomos de bolas de futebol e pernas de boneca deixados para trás por antigos moradores da favela pacificada.
Foi quando os dois se viram cercados por um grupo de homens atordoados, dizendo portar armas, curiosos por saber o que tanto fuçavam. Clarissa gelou. Yuri também. Foram intimidados, ouviram acusações e, quando caiu uma graviola da árvore ao lado do grupo, Yuri jurou que era um tiro. A sorte foi que um grupo de crianças “desenrolou” com os supostos bandidos, explicando que Clarissa era conhecida da comunidade, onde ia sempre colher relatos de antigos moradores para suas pesquisas. Só aí foram “liberados”.
— Foi a primeira vez em que percebi que o meu trabalho no MAR era muito mais complexo do que eu imaginava. Que eu ia precisar de muito mais rebolado para fazer as exposições do jeito que queria, por mais simples que fossem — conta Clarissa, a curadora pernambucana de apenas 28 anos que tem se destacado na função de braço direito do diretor cultural do MAR, Paulo Herkenhoff, neste primeiro ano do museu.
Exercício curatorial incomum
Com uma formação teórica e crítica apurada para a pouca idade, ela também assina, em parceria com o historiador de arte, professor e escritor Rafael Cardoso, a curadoria da mostra “Do Valongo à favela”, que será inaugurada no próximo dia 27, com obras históricas e contemporâneas sobre a região portuária.
— Naquela exposição, que era uma das primeiras do MAR, também tivemos que lidar com uma série de burocracias para liberar tanto as peças arqueológicas quanto as do entulho, explicar ao poder público o uso que faríamos delas, a leitura crítica da dinâmica urbana que faria o Yuri. Esse primeiro momento foi bastante turbulento, ainda era preciso apresentar o museu, ganhar espaço, confiança. Tudo aqui ainda é muito novo, e o processo de construção de uma instituição não é o tempo todo exatamente prazeroso. Foi um exercício curatorial bastante incomum — comenta Clarissa, que, para mergulhar na experiência de integração do MAR com a região portuária, mudou-se de mala e bicicleta para o Morro da Conceição.
Perto da figura de um curador de museu tradicional, o trabalho de Clarissa é, como ela diz, bastante incomum. Além de resolver burocracias típicas de um museu recém-inaugurado — o MAR tem apenas um ano —, ela acompanha cada artista que passa por ali do início ao fim da exposição. Quer saber como cada obra foi concebida, quais leituras levaram o autor àquele ponto, cria problemas de conceituação, não economiza críticas duras aos expositores. Sem deixar de subir morro para catar bola de futebol murcha, como fez com Yuri Firmeza, ou de martelar prego na parede para acelerar a montagem de uma exposição, como fez na mostra “Pernambuco experimental”, a primeira que assinou sozinha no MAR.
— Conheci a Clarissa há alguns anos, em alguns debates ou seminários sobre arte no Nordeste. Eu já acompanhava o trabalho da revista “Tatuí”, sem saber que era ela que editava. Me chamava a atenção sua visão de mundo, sua escrita, a maneira como ela não só acompanhava os artistas de sua geração como os de outras, e de diversas regiões do Brasil. Ela me apresentou ao trabalho do artista pernambucano Montez Magno, que já está quase com 80 anos, fizemos a exposição dele, e ela escreveu um livro brilhante sobre a sua obra — elogia Herkenhoff. — É importante para o curador ter esse rigor de pesquisador, que ela tem, de ter curiosidade sobre o restante do Brasil, de criar exibições problematizadoras, o que é um olhar bem raro no Rio.
Assim que soube que Clarissa estava morando na cidade, onde veio fazer mestrado na Uerj, Herkenhoff a convidou para trabalhar no MAR.
— Aos 65 anos, minha função não é mais fazer coisas, mas abrir espaço para essa nova geração de curadores. Clarissa é simples, não é estrela. Trabalha em equipe, valoriza o trabalho em conjunto. Quantos curadores você conhece que sobem o morro para catar entulho com o artista? Combina bem com o MAR, que não quer levar coisas prontas para a comunidade, quer construir a partir dela.
Artista orientado por Clarissa em sua primeira individual, no CCBB do Nordeste, em 2009, Yuri Firmeza acrescenta:
— Ela não tem papas na língua ou oba-oba, se posiciona claramente com o artista, ao mesmo tempo em que tem uma escuta afiada, porosa, que se deixa contaminar — conta Yuri, apontando que a sensibilidade da jovem vem de seu lado “bruxa”. — Ela contou que é bruxa, que lê mão?
Contou. Mas nem para isso tem tido tempo. Clarissa tem trabalhado tanto (a entrevista teve de ser feita em três partes, tantos foram os chamados urgentes para que retornasse ao museu) que só quando uma exibição é inaugurada ela consegue fazer suas coisas, como estudar quiromancia. Ou editar a tal revista digital de crítica de arte “Tatuí”, que toca desde 2006; fazer as pesquisas do próprio mestrado na Uerj; descobrir e orientar novos artistas, como Marina de Botas, videomaker cearense que desenvolve uma pesquisa sobre a maternidade nas artes plásticas. Um trabalho que exige visitas mensais de Clarissa ao Museu de Arte Contemporânea do Ceará, onde acompanha o desenvolvimento dos trabalhos de Marina.
Em Fortaleza, Clarissa também participou como pesquisadora do projeto Rumos Artes Visuais, do Itaú Cultural, um mapeamento dos artistas do Nordeste feito de 2008 a 2009. Na ocasião, dividiu as tarefas com Bitu Cassundé, hoje diretor do MAC da capital cearense:
— O diferencial dela é seu embasamento teórico. É uma capacidade rara de sistematizar a arte e os processos poéticos. Tem um livro dela sobre Gilberto Freyre de que gosto muito, além do que ela escreveu sobre Montez Magno. Além disso, tem uma ótima noção museográfica e espacial, aquele “como” montar uma exposicão.
Ah, sim: Clarissa também dança tango e, e quando dá tempo, almoça. Foi numa tentativa de almoço que ela contou a história de sua formação tão específica.
Conexão Glasgow-Brasília
Nascida em Recife, Pernambuco, Clarissa viveu até os oito anos em Glasgow, na Escócia, onde os pais faziam doutorado (ele, em Engenharia de Sistemas, ela, Veterinária). Estudou em escolas onde as aulas de artes eram tão importantes quanto as de matemática, conta, o que a aproximou do teatro, piano e balé. De volta ao Brasil, foi morar em Brasília, onde carregava para cima e para baixo um pequeno catálogo de vanguardas artísticas, que lia como se fosse um gibi. Falava com sotaque estranho, se vestia de maneira estranha (“eu andava toda colorida”, lembra), agia de modo estranho com toda aquela paixão pelas figuras. Fez toda a turma decorar a diferença entre um Monet e um Manet, mas foi quando um dos professores sugeriu a ela a leitura de “Cartas a Theo”, de Van Gogh, é que percebeu que só seria feliz se estivesse metida entre os artistas. Voltou a Recife e começou a se integrar à cena local, fazendo teatro, performances e organizando exposições, até formar-se em Artes Visuais e começar a “curar” em diversos centros culturais do país.
— Tento fazer da exposição um lugar claro, didático. Um espaço convidativo. E isso está na disposição, nos textos das legendas, não necessariamente na interatividade do museu com o público. Não acho que tenhamos a missão de formar público aqui, mas de oferecer um contexto novo para o exercício de uma nova sensibilidade. O mundo está tão pasteurizado que só cabe à arte ser uma expressão distinta — atesta Clarissa, tentando prender o cabelo e a saia, que teimam em voar ao mesmo tempo no terraço do MAR, onde posou para as fotos. — Por isso, é uma característica do museu apostar em exibições que sejam mais “transversais”, ou seja, nem só verticais, que tentem dar conta de um artista verticalmente; nem só horizontais, que passem por temas de maneira quase superficial. É um jeito de curar que o Paulo trouxe para cá e no qual eu acredito também. Foi assim nas mostras “Pernambuco experimental”, “Josephine Baker e Le Corbusier” (em cartaz) e na do Valongo. Dificilmente teremos individuais aqui, a proposta é de encontros, de tornar o processo de criação coletiva.
Além de apurada, precoce e meio bruxa, Clarissa é tão partidária da arte feita de maneira coletiva que não se considera, ela mesma, uma artista. Já participou de performances alheias (em 2011, num happening de Daniel Santiago, vestiu-se de “democracia” e pôs-se a chupar melancias, trabalho intitulado “A democracia chupando melancia”), e tem outras duas performances próprias disponíveis no YouTube. Ainda assim, recusa o título, preferindo o espaço da teoria e da crítica.
— Há uma característica sedutora na performance que me encanta, que as outras artes não têm, que é o de não passar despercebida. Às vezes eu pratico, mas assim, como quem joga bola nos fins de semana...