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A colagem poética de Claudia Roquette-Pinto

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RIO - “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada./ Pois que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite.” Assim começa “Dissolução”, poema da seção intitulada “Entre lobo e cão”, que abre o livro “Claro enigma”, de Carlos Drummond de Andrade. Pensando nesse momento de lusco-fusco, no limiar entre a tarde e a noite, o momento “entre”, Claudia Roquette-Pinto chamou de “Entre lobo e cão” seu novo livro, lançado pela editora Circuito.

— Quando eu estava escrevendo esse livro, com 40 e tantos anos, queria refletir sobre a mulher mais velha, a mulher madura, onde fica o desejo, que papel é esse na sociedade — comenta Claudia. — A mulher madura está nesse mundo cão: ela está entre dois momentos muito definidos, a juventude e a velhice, mas ela não é uma coisa nem outra, é as duas ao mesmo tempo. Também, nesse momento, a minha personagem não sabia se queria ser um animal selvagem ou um bicho doméstico.

Sem contar as colaborações em revistas brasileiras e estrangeiras, fazia tempo que Claudia não publicava. Seu último livro de poesia, “Margem de manobra”, saiu em 2006. Nessa longa estiagem, ela escreveu um romance de 260 páginas sobre uma mulher que vive uma aventura, ou várias aventuras, um livro sobre a mulher e seu corpo. Depois, a autora rearranjou o tal romance 18 vezes, mas decidiu que ainda precisava de mais tempo antes de dá-lo como pronto.

— Quando não estava conseguindo escrever, percebi que a colagem voltou com toda força. Era uma coisa que sempre fiz, desde garota, como hobby. Colagem tem esse procedimento surrealista de tirar o objeto do seu contexto e colocar em outro, e aquilo cria um choque, um atrito, que por si só já é poético. Era bem catártico pra mim, eu estava elaborando as minhas questões.

Foi então que o editor Renato Rezende propôs que ela reunisse as colagens em livro. Claudia aceitou o convite e teve a ideia de aproveitar trechos do romance em andamento (também chamado de “Entre lobo e cão”), que ela pretende lançar quem sabe daqui a dois ou três anos. A partir do que chama de “lógica intuitiva”, juntou os fragmentos do futuro romance com as composições de fotos de revistas, sem hierarquia. A imagem não é ilustração, e o texto não é legenda.

— Os textos mais ou menos contam uma história, cheia de furos, como um queijo suíço, e as colagens contam essa história visualmente — explica Claudia, que em 2001 recebeu o prêmio Jabuti com o livro de poesia “Corola”. — Recortei as imagens de revistas, aquelas bem elitistas, que mostram socialites, mulheres muito bem tratadas, bem vestidas, cheirosinhas, junto com caras de outro universo, homens jovens e negros. Quem está oprimindo quem? Quem domina e quem é dominado?

O livro é uma colagem dupla. A colagem da colagem: por um lado, um recorte e cole de fotos de revistas, e por outro um recorte e cole dos textos do romance homônimo, ainda por vir.

— Eu me sinto livre podendo fazer essas coisas. Escrevi um livro em que uma mulher tem muito prazer, e ninguém tem que morrer por causa disso.

* Alice Sant’Anna escreve na página Transcultura, publicada às sextas-feiras no Segundo Caderno


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