Em meio a um herói que veste um uniforme estilizado com a bandeira dos EUA e outro que se pendura em teias pelos prédios de Nova York, o público brasileiro de cinema poderá conhecer, nas próximas semanas, personagens mais próximos da nossa realidade, como um menino que sonha em alisar o cabelo e, por isso, sofre preconceito da mãe; um adolescente que carrega caixas num grande mercado e acaba envolvido num esquema criminoso; ou uma jovem família que lida com assassinatos e tráfico de drogas. Todos pobres, mestiços e latino-americanos — mas, apesar das semelhanças com o povo brasileiro, também todos de cinematografias que até recentemente pouco tinham espaço no país.
São filmes vindos de Venezuela, Paraguai, México, Bolívia, Colômbia ou Chile, que chegam para equilibrar um circuito dominado pelo cinema dos EUA. Nos últimos anos, salvo raríssimas exceções, os únicos longas-metragens hispano-americanos que estreavam no Brasil vinham da Argentina. O restante ficava relegado a festivais. Só que novas distribuidoras e o aumento da produção nacional nos países vizinhos vêm mudando esse panorama.
— Por muito tempo, o cinema de outros países latino-americanos não esteve na rota do Brasil. Era como se fôssemos um mercado à parte. Na lógica de quem vendia os filmes, o Brasil não fazia parte da América Latina — afirma Camila Moraes, roteirista e jornalista responsável pelo site “La Latina”, especializado em cinema latino-americano. — Certamente daqui a cinco anos, com o trabalho que quatro ou cinco distribuidoras pequenas estão fazendo, vai ser outra coisa. A gente ainda não estará tratando o cinema da América Latina como prioridade, o que faria sentido pelas proximidades culturais, mas vamos começar a receber um número mais razoável de filmes desses países vizinhos.
Este ano, já chegaram às salas do Rio o boliviano “Crônica do fim do mundo”, de Mauricio Cuervo, e o chileno “Glória”, de Sebastián Lelio. Na quinta-feira, foi a vez da estreia do venezuelano “Pelo malo”, de Mariana Rondón, filme que conta a história do garoto que se sente desconfortável com seu cabelo crespo.
— Em todas as famílias há gente de várias cores e com vários tipos de cabelo. Então é possível escutar alguém brincar com o outro que ele tem um cabelo ruim, o que, apesar de uma origem ruim e preconceituosa, também pode ser encarado com afeto — explica Mariana. — Há uma resistência grande na Venezuela em respeitar as diferenças. Isso passa pelo cabelo, pela homofobia, pelo racismo ou pelas opiniões políticas. É um problema de toda a sociedade. Eu quis trabalhar a intimidade de uma casa para mostrar temas da sociedade venezuelana. E acredito que são temas também importantes para o Brasil.
“Pelo malo” recebeu a Concha de Ouro no último Festival de San Sebastián, na Espanha, e desde então vem chamando a atenção de mercados internacionais e também ajudando a projetar o cinema venezuelano: em 2013, o país lançou em suas salas 16 ficções e quatro documentários, num total de 20 longas-metragens nacionais. Muito desse resultado se deve à aprovação, em 2005, de uma lei voltada ao cinema venezuelano, que expandiu o sistema de cota de telas e implantou um fundo de financiamento.
— Estamos vivendo um momento muito bom para o cinema venezuelano. Para este ano estão previstas estreias de cerca de 40 filmes, um número muito bom para um país do tamanho do nosso — conta Mariana.
Menor ainda que a Venezuela e sem uma lei específica para o financiamento de filmes, o Paraguai é o próximo país hispano-americano a trazer uma produção ao Brasil. Na próxima quinta estreia no Rio “7 caixas”, dos diretores paraguaios Juan Carlos Maneglia e Tana Schembori: um suspense sobre um rapaz que carrega caixas no Mercado 4, em Assunção, o filme foi a maior bilheteria da história do cinema paraguaio, com 350 mil espectadores.
— Até então, o filme de maior sucesso aqui havia sido “Titanic”, com 150 mil espectadores. Agora, a gente já começa a perceber um aumento no interesse por cinema no país — conta Maneglia. — Eu sinto que as pessoas têm uma necessidade de ver um cinema diferente, mais próximo da nossa sociedade. Com “7 caixas”, nós partimos de uma estética de filmes americanos para tratar de temas caros para a gente. E acho que isso se passa com toda a América Latina.
O Paraguai fez, até aqui, apenas 25 filmes de ficção em toda a sua história — no ano passado foram dois, mais um documentário. Só que, para este ano, já estão em produção mais cinco. E, ainda em 2013, foi aberta a primeira universidade de Cinema do país.
— O que talvez ainda falta sejam canais de distribuição melhores. Não temos salas de cinema de arte no Paraguai, e temos apenas um festival que exibe filmes de outros países da América Latina. Só que hoje há um entusiasmo em se fazer cinema, e isso é fundamental. É ótimo que nosso filme estreie no Brasil, e espero que ele abra caminho para outras produções — diz Maneglia.
No início deste mês, Maneglia esteve na Cidade do Panamá, para participar da primeira edição dos Prêmios Platino do Cinema Ibero-Americano, uma dessas iniciativas criadas com intuito de promover o cinema dos países participantes e que vem sendo chamado de Oscar Latino. O chileno “Gloria” foi o grande vencedor, mas o prêmio também deu projeção para outras obras com estreia prevista no Brasil, como os mexicanos “Heli”, de Amat Escalante (melhor direção no Festival de Cannes e nos Prêmios Platino; estreia no Brasil em 1º de maio) e “Não aceitamos devoluções”, de Eugenio Derbez (melhor ator nos Prêmios Platino; estreia no Brasil em 26 de junho). Curiosamente, mesmo o México, que tem uma cinematografia tão robusta quanto a do Brasil, raramente tinha espaço no circuito daqui.
— Mais de 700 filmes são feitos na Ibero-América por ano. E tenho certeza de que 90% dos filmes feitos nesses 22 países praticamente não são conhecidos, nem em seu próprio país — lamenta Enrique Cerezo Torres, presidente da Egeda (Entidade de Gestão de Direitos dos Produtores Audiovisuais), associação espanhola que, junto à Fipca (Federação Ibero-Americana de Produtores Cinematográficos e Audiovisuais), organizou os Prêmios Platino. — Nosso grande objetivo é mudar esse quadro.
Número de estreias de filmes nacionais nos países latino-americanos em 2013:
Argentina: 167 filmes
Brasil: 127 filmes
México: 110 filmes
Chile: 37 filmes
Colômbia: 21 filmes
Venezuela: 20 filmes
Peru: 15 filmes
Equador: 15 filmes
Cuba: 15 filmes
Bolívia: 14 filmes
República Dominicana: 14 filmes
Uruguai: 13 filmes
Guatemala: 8 filmes
Porto Rico: 6 filmes
Paraguai: 3 filmes
Costa Rica: 3 filmes
Panamá: 3 filmes
Nicarágua: 1 filme
El Salvador: 1 filme
Honduras: 1 filme