RIO - Alejandro Zambra, 39 anos, como outros escritores da sua geração, era criança durante a ditadura comandada por Augusto Pinochet no Chile, entre 1973 e 1990. E seu terceiro livro, publicado agora no Brasil, “Formas de voltar para casa” (Cosac Naify), tem forte influência de suas lembranças. No romance, escrito pelo autor depois de fazer anotações por quatro anos, a narrativa se desenvolve em dois planos: o primeiro, das memórias de infância, que o protagonista tenta resgatar para escrever um livro no segundo plano, o presente. Ao refletir sobre a estrutura que escolheu, Zambra busca uma referência em Marcel Proust (1871-1922) — que, em seu ciclo de romances “Em busca do tempo perdido”, falava da impossibilidade de se resgatar o passado por meio da inteligência. No romance, ele narra o acontecimentos da ditadura chilena pelo olhar dos personagens secundários, especialmente as crianças, para quem Pinochet não passava de um personagem que aparecia na TV para atrapalahar os melhores programas. Nesta entrevista ao GLOBO, Zambra fala sobre a relação entre real e ficção no livro, a influência da linguagem poética em sua obra e da tristeza de lembrar os anos de chumbo em seu país.
Ficcional e real se misturam no romance. Por que fazer essa relação?
Interessa-me entrar em territórios onde não se sabe se a literatura te expõe ou te protege. Por outro lado, para mim não é claro o limite entre ficção e não ficção. Talvez pela influência da poesia. Existe a poesia de ficção, como os monólogos dramáticos de Robert Browning, mas não existe uma “poesia de não ficção”. “Formas de voltar para casa”, de todo modo, não é mais ou menos autobiográfica que “Bonsai” ou “A vida secreta das árvores”, mas parece ser mais, porque foi escrito em primeira pessoa.
Por que falar da ditadura? Quanto tempo levou para amadurecer a ideia?
Para mim, falar da infância sempre foi, pelo menos desde a adolescência, quase o mesmo que falar da ditadura. Durante anos pensei em escrever sobre a infância, os bairros onde cresci e sobre como, sendo crianças, convivemos com o que se passava. Me interessava ir além da alegação de inocência ou culpa. Me interessava essa condição de fantasmas: estávamos e não estávamos ali. Éramos meninos, e o mais fácil é dizer que não entendíamos o que acontecia. Mas entendíamos algo. Intuíamos algo. Mais que um livro sobre os fatos, é um livro sobre o sentido, para alguém da minha idade, de narrar tais fatos.
Desde “Bonsai”, é evidente a influência da linguagem poética em sua prosa. Como se dá essa relação?
A poesia, para mim, tem a ver com um desejo de precisão e com o ritmo. Não sei como será lido em português — imagino que bem, porque me disseram que o tradutor é magnífico —, mas me importo muito com a música da frase. Tanto como leitor, quanto como escritor.
Como a sua geração vê os anos de Pinochet?
Como dizia antes, não posso distinguir muito bem a ditadura da infância. Em retrospecto, todas as experiências se tornam amargas, inclusive os momentos de felicidade. O que se viveu, aos cinco anos, como uma experiência privada e talvez plena, já não pode ser lembrada sem se sentir a amargura por aqueles que viveram uma tristeza infinita. “Formas de voltar para casa” também é um livro sobre o momento em que o sofrimento se torna coletivo. E creio que isso ocorreu muito tarde no Chile, só recentemente. E a verdade é que não aconteceu completamente, posto que há crimes sem solução e militares vivendo em prisões de luxo ou em liberdade, se negando a dar informações sobre seus crimes. E ainda somos regidos pela constituição de Pinochet. Maquiada, mas ainda assim a mesma.
Você acredita que é possível ter êxito ao estabelecer um relato verdadeiro do passado?
Não creio que se possa chegar a uma versão verdadeira do passado, mas sim a muitas versões, a um coro de vozes em diálogo. Me interessa esse diálogo, essa busca o mais coletiva possível. Acho que o que faz falta no Chile é esse tipo de diálogo.
Você começa o livro com a epígrafe “Em vez de gritar, escrevo livros”. É esse o papel do escritor?
Não sei se de todos os escritores, mas me identifiquei muito com essa frase. A literatura nos permite gritar de outra maneira, bisbilhotar em zonas inseguras. Permite, em vez de se afirmar como uma voz única e autoritária, sussurar, talvez balbucear, e buscar o atrito com outras vozes. Permite dar forma a nossa sentimento, para ir além do sentimento. Não acredito que a literatura simplifique a experiência, mas que ela mostre a complexidade dela. Ela demonstra que somos pessoas más, que há uma multiplicidade dentro de nós.
Em certo momento, seu narrador diz que “ainda que queiramos contar histórias alheias, acabamos contando sempre nossa própria história. O que há de autobiográfico no romance?
Bastante, como em todos os livros. Acho que para observar bem os outros, primeiro é preciso olhar a nós mesmos com honestidade, sem uma gota de indulgência. Me interessa também a legitimidade da recordação. Quem pode recordar? Temos direito de falar pelos outros? Até que ponto podemos apagar-nos e ceder aos personagens a voz? Essas perguntas me interessam.
Entre outros episódios da ditadura, o romance cita os mortos do Estádio Nacional. A literatura deve fazer esse tipo de denúncia?
São fatos conhecidos por todos os chilenos. Mais de uma pessoa como foi, como adulto, levar seus filhos a um espetáculo de humor de Chespirito depois do que havia acontecido no estádio. Credio que a literatura sempre acaba por denunciar os reducionismos que muitos tentam fazer para simplificar a realidade e enganar as pessoas.
Proust mostrava exatamente o problema de relembrar o passado por meio da inteligência. Seu livro tem alguma influência dele?
Creio que todos escrevemos em busca do tempo perdido.
Qual gênero serve melhor a esse fim, a poesia ou a prosa?
Os dois. Mas eu iria além da distinção entre poesia e prosa, não acho que essa divisão seja tão relevante.