RIO - A perspectiva de iniciar a nona década de vida é algo que deixaria qualquer um fora do esquadro — ainda mais alguém como João Donato, parte fundamental da música popular brasileira desde os tempos em que a bossa nova ainda era um embrião, e que viu o mundo se render ao charme dos seus acordes. Mas, com o olhar perdido no mar da Urca, da janela de casa, o pianista, compositor e arranjador parece encarar a passagem do tempo com a mesma serenidade que imprimiu a suas canções. E aproveita a proximidade de seu aniversário de 80 anos, em 17 de agosto do ano que vem, para empreender uma jornada por sua própria história. O primeiro passo será dado nesta quarta-feira, às 21h30m, com a gravação de um CD ao vivo, “Donato jazz”, no Studio RJ, com o trio formado por Robertinho Silva (bateria), Luiz Alves (baixo) e Ricardo Pontes (sax e flauta). Veja vídeo com o artista acima.
Com lançamento marcado para depois do carnaval, o disco será seguido por um DVD de releituras de Debussy e Ravel com orquestra, por uma série de documentários, exposição, biografia e alguns shows no Brasil e no exterior.
— Eu me olho no espelho e não me acho com cara de quem vai fazer 80 anos. Sinto-me bem. Continuo tocando, compondo, escrevendo, arranjando... — diz Donato, com a voz mansa de quem não precisa de muitos decibéis para ser ouvido. — A música faz bem ao espírito e à alma. Ela nos torna mais felizes, compreensivos e delicados.
“Donato jazz” será a oportunidade de o músico gravar algumas de suas novas canções (com parceiros como Gabriel Moura, Nelson Motta, Moacyr Luz e Ronaldo Bastos) e lembrar velhos amigos, como o pianista Horace Silver (numa releitura de “Song for my father”) e Tom Jobim (com a parceria “Quando a lembrança me vem”, que foi redescoberta pelo filho de Tom, Paulo, e gravada por Miúcha em 2002).
— Essa, nós fizemos nos anos 1950, quando nos encontrávamos nas boates de Copacabana... As mesmas onde não conseguíamos tocar porque nossa música não era bem aceita, porque queriam aqueles sambas mais dançantes. Aliás, essa foi uma das razões pelas quais eu viajei para os Estados Unidos.
Ao buscar o jazz nos EUA, nos anos 1960 (de onde voltou em 1972), Donato passou por situações inesperadas. Uma delas foi tocar com o mito do trompete Chet Baker (“Íamos gravar um disco juntos, mas ele tinha acabado de tomar uma surra e perdeu a embocadura, nunca mais foi o mesmo.”). Outra foi mergulhar na cena da música afro-cubana.
— Quando cheguei à Califórnia, o jazz estava meio parado. Os músicos tocavam nas orquestras latinas, de Perez Prado e Tito Puente... E eu fui obrigado a seguir o mesmo caminho, até que apareceu a bossa nova nos Estados Unidos, e os brasileiros que por lá passavam me procuraram para formar conjuntos de piano, baixo e bateria.
Os toques afro-cubanos, porém, nunca mais deixaram a música de Donato. E estarão na suíte sinfônica popular que ele prepara para o primeiro semestre de 2014, com as obras de Claude Debussy e Maurice Ravel, mestres da música impressionista que ele começou a admirar na adolescência.
— Existe a música antes e depois de Debussy e Ravel. Música para cinema, bossa nova, jazz, é tudo reflexo do que eles fizeram. Por mais que eu pratique, analise e estude suas obras, elas trazem sempre uma novidade — conta.
A discografia essencial de João Donato
A discografia essencial de João Donato http://t.co/h0vzn8vgwN
— Cultura - O Globo (@OGlobo_Cultura) December 4, 2013
Nascido em Rio Branco, no Acre, Donato lembrará sua infância amazônica no segundo semestre de 2014, com uma exposição sensorial (ainda sem local definido) assinada pela artista plástica Ana Durães e pelo designer Cláudio Fernandes (“Vai ter água, floresta, cheiro de mato...”, adianta ele) e com um piano feito só de madeiras típicas do Acre, a ser construído pela fábrica Fritz Dobbert.
— A Amazônia está entranhada em mim — diz João, que ainda em Rio Branco, aos 7 anos, compôs sua primeira música, “Valsa para Nini”. — Fiz para a minha primeira namorada. Ela não dava muita bola, não, mas foi a minha primeira inspiração. Toquei isso uma vez lá em Moscou e fui aplaudido durante uns cinco minutos.
Calouro barrado por Ary Barroso
Até se tornar um dos pianistas e arranjadores mais disputados da música brasileira, e autor de clássicos como “Simples carinho”, “A rã” (com Caetano Veloso), “A paz” e “Lugar comum” (ambas com Gilberto Gil), Donato teria um longo caminho. No Rio, ainda criança, ele chegou a ir com seu acordeom ao programa de calouros de Ary Barroso.
— Ele disse que não gostava de crianças-prodígio, e eu nem toquei. Fiquei um pouco triste, me deixaram ir até o palco, podiam ter evitado aquele fora — lamenta o músico, que chegou a levar o instrumento para os EUA, onde ele foi roubado. — Aproveitei para nunca mais comprar outro acordeom!
Essa é uma das várias histórias que serão contadas na biografia autorizada de Donato, assinada pelo jornalista Antônio Carlos Miguel, prevista para sair antes da Copa, assim como um projeto há muito adiado: um CD em dueto com o filho, o também pianista Donatinho.
— Ele é um menino muito musical, demonstrou essas tendências desde cedo. Donatinho morava comigo, eu botava as minhas músicas, e ele ouvia enquanto jogava videogame. Um dia, ele decidiu estudar música na escola do (pianista e arranjador) Antonio Adolfo, dizendo: “Já que você não quer me ensinar mesmo...” Agora, Donatinho está tocando com todas as pessoas importantes da música no Brasil.
Uma série de documentários para o Canal Brasil (da diretora Tetê Moraes), uma série de shows no CCBB de Brasília dos múltiplos Donatos e apresentações em Paris, Nova York (no Lincoln Center) e Moscou devem completar as homenagens ao músico em 2014. Vai faltar ano para tanta comemoração.
O que vem por aí
CD “Donato Jazz”
Gravação nesta quarta, às 21h30m, no Studio RJ. Lançamento após o carnaval.
Suíte sinfônica popular
Show e gravação de DVD com uma orquestra sinfônica. Lançamento no primeiro semestre de 2014.
Exposição sensorial
Assinada pela artista Ana Durães e pelo designer Cláudio Fernandes, em local a definir. Para depois da Copa do Mundo.
Série documental
Em quatro capítulos para o Canal Brasil, com direção de Tetê Moraes. Também depois da Copa.
12 shows no CCBB
Entre julho e dezembro do ano que vem.
CD com Donatinho
Para o primeiro semestre de 2014.