MADRI - Cornelius Gurlitt se recusa a entregar voluntariamente a coleção de arte que foi descoberta a partir de investigação realizada na Alemanha há alguns anos e revelada no começo de novembro. O colecionador de 80 anos defende seu direito a conservar os mais de 1.280 desenhos e pinturas encontrados em seu apartamento em Munique.
Em uma entrevista publicada no domingo no semanário "Der Spiegel", o ancião assegura que seu pais, o marchand Hildebrand Gurlitt, adquiriu todas as peças de forma completamente legítima. Ele afirmou ainda que se separar das obras foi mais difícil do que dizer adeus a sua irmã Benita, morta ano passado. "Dizer adeus a minhas pinturas foi a coisa mais difícil da vida", disse.
Os investigadores estão avaliando a procedência da grande coleção que Gurlitt mantinha em segredo no bairro de Schwabing. Seu progenitor sofreu represálias pelo regime devido a sua (parcial) ascendência judaica, mas colaborou com os nazistas na venda da que ficou conhecida como "arte degenerada" nas primeiras décadas deste século. O caso levantou enorme expectativa em todo o mundo.
O alemão é investigado pelo fisco por suposto delito fiscal e apropriação indébita. Suspeitam que parte das peças poderia ter chegado aos Gurlitt por vias ilegítimas durante a ditadura nazista, quando galeristas e colecionadores judeus de toda a Europa tiveram que se desfazer de suas obras de arte para escapar dos invasores alemães. Quase 600 peças da coleção poderiam ser parte deste conjunto de arte roubada. As autoridades divulgaram até agora uma lista de 25 peças da coleção na internet, com o objetivo de acelerar sua restituição se se comprovar que foram furtadas.
Matthias Nickolai, fiscal da cidade de Augsburgo, próxima a Munique, explicou ao jornal alemão que as obras vão continuar nas mãos das autoridades como prova das possíveis infrações que estão investigando. Em relação a Gurlitt, os fiscais creem que não há risco de fuga.
O suspeito lamenta que não lhe devolvam suas peças, as quais parece manter um forte vínculo emocional. Ele assegura que seu único objetivo era viver em casa com as obras de arte. "É o que mais quero em minha vida", arremata. Desde a morte de seu pai, em 1956, cuidar da coleção que herdaram ele, sua mãe e sua irmã é a única atividade conhecida de Gurlitt.
Ele vivia (até pouco tempo com sua mãe, recentemente falecida) do dinheiro da venda paulatina de algumas de suas obras. A entrevista para a "Der Spiegel" é uma excelente amostra da rocambolesca história dos Gurlitt e das peças que ficaram sob suspeita desde a investigação de evasão fiscal que começou casualmente.
Na conversa, Cornelius aparece como um homem solitário, doente e velho, entre a vitimização ("O que essa gente quer de mim?") e a acusação ("nunca quis nada do Estado", "Que Estado é esse que exibe minha propriedade privada?”).
Ele justifica sua própria passividade e exaltou a memória de seu pai, a quem apresenta como uma vítima dos nazistas: "Não sou tão valente quanto ele, que viveu para a Arte e lutou por ela".
A entrevista contou também por assuntos íntimos. Perguntado sobre relacionamentos amorosos, ele respondeu rindo que nunca se apaixonou por alguém, só por sua arte e sua família.
'Ele sempre foi estranho'
Há 29 anos zeladora do prédio onde vive Gurlitt, Christine Echter conta que a irmã dele era a única pessoa que costumava entrar no apartamento e que interrompeu as visitas há seis anos. "Ele sempre foi estranho", disse Christine ao "New York Times".
Konrad O. Bernheimer, um dos galeristas mais conhecidos de Munique, diz que, embora esteja no negócio há décadas, nunca havia ouvido falar de Gurlitt e de sua coleção. "A parte mais triste de toda essa história é a vida deste homem", afirma o marchand. "Ele esteve trancado no escuro com todas essas pinturas maravilhosas. Gurlitt é um homem nas sombras, um fantasma que nunca aparecia."
Especialista na chamada "arte degenerada", Vanessa Voigt diz que aquele não era o apartamento de um colecionador. "Alguém que coleciona arte se orgulha do que tem e exibe isso. Ele era mais alguém que queria se esconder do mundo. Havia uma qualidade cavernosa naquele ambiente", avalia a historiadora da arte.