RIO - Exibida entre setembro de 2012 e março de 2013, “Lado a lado” mostrava, como pano de fundo de suas tramas, o Rio de Janeiro do início do século XX. A novela é o capítulo mais recente da história do negro na televisão, ela mesma uma trama com enredo repleto de bons e maus momentos.
— No primeiro capítulo de “Lado a lado”, Constância (Patrícia Pillar) diz: “Imagina se o samba, essa batucada de africanos, de macumbeiros, algum dia vai ter qualquer importância para o Brasil!” e cortava para uma sequência de carnaval de rua ao som de “A voz do morro”. Não falávamos de vítimas da escravidão, mas dos heróis que enfrentaram obstáculos para sedimentar a cultura afro-brasileira — explica João Ximenes Braga, autor de “Lado a lado” junto com Cláudia Lage.
Especialista no assunto, o cineasta e diretor do documentário “A negação do Brasil”, sobre a história do negro na TV, Joel Zito Araújo ficou otimista com a abordagem da trama exibida pela Globo às 18h.
— Foi um marco dramatúrgico. Nenhuma novela até então conseguiu dar o mesmo peso para os dois grupos raciais fundamentais do Brasil. Ali você tem dois casais de protagonistas, a importância da comunidade negra por trás da transformação do Rio no início do século XX, além de vários marcos históricos, os capoeiristas, a Revolta da Chibata, a criação do samba. É uma novela que encanta e respeita. Ali vi uma luz no fim do túnel — elogia.
A representação do negro é, desde o surgimento da televisão, marcada pela alternância de polêmicas e avanços. Embora ainda haja o que conquistar, a evolução é um fato, concorda a maior parte dos ouvidos pela Revista da TV para esta edição especial. João lembra que “Lado a lado” foi a primeira trama a trazer o nome de um ator negro (Lázaro Ramos) abrindo seus créditos. Em 1969, em “A cabana do pai Tomás”, da Globo, os mesmos créditos chegaram a ser motivo de polêmica.
— Ruth de Souza já era uma celebridade por causa da (companhia cinematográfica) Vera Cruz. Tinha ido aos Estados Unidos, onde conheceu a nova geração de negros que fazia sucesso em Hollywood, como Harry Belafonte e Sidney Poitier; ela era respeitada pela sua elegância, quase ganhou o Festival de Veneza... Quando foi fazer “A cabana do pai Tomás”, todo mundo achou que seria seu grande papel na TV. Ela começou como estrela principal nos créditos mas, por pressão das outras atrizes e do público, seu personagem foi diminuindo e seu nome foi desaparecendo — relembra Zito.
Mas a maior polêmica de “A cabana do pai Tomás” era ainda outra: apesar de ter um grande elenco de atores negros, o protagonista era Sérgio Cardoso, um ator branco que se pintava para dar vida ao escravo.
— O (dramaturgo) Plínio Marcos começou a questionar e organizar manifestações. Foi um movimento muito forte em São Paulo, e isso contribuiu para o descrédito da novela. Depois veio o acidente (os estúdios onde a trama era gravada pegaram fogo) e ela terminou muito antes do planejado.
Embora “A cabana do pai Tomás” seja lembrada como a primeira trama a concentrar um grande número de negros em seu elenco, não foi a primeira vez que a questão racial foi abordada na teledramaturgia. Professor da PUC-Rio e coordenador da Casa das Artes de Laranjeiras, Hermes Frederico resgata duas histórias da década de 1960 para exemplificar: em 1965, em “A cor de sua pele”, da TV Tupi, Yolanda Braga foi, segundo ele, a primeira protagonista negra na TV, no enredo que girava em torno de sua paixão por um homem branco (Leonardo Villar). Já em “Vidas em conflito”, exibida em 1969 pela TV Excelsior, Zózimo Bulbul foi o primeiro galã negro, fazendo par romântico com Leila Diniz.
— A temática sempre foi presente, mas a carreira desses atores não teve continuidade. Yolanda foi uma protagonista e depois nunca mais fez nada — destaca Hermes, explicando que, com essa afirmação, não tira de Taís Araújo o título de primeira protagonista negra por “Xica da Silva”, da Manchete, em 1996: — Taís foi a primeira da fase moderna da TV, quando a telenovela já estava solidificada e num esquema industrial, com a importância enorme que tem hoje. Então, de qualquer forma, foi fortíssima a escalação dela.
E foi ainda antes de tudo isso, em uma das primeiras telenovelas da história do Brasil, que surgiu uma personagem negra pioneira por fazer um enorme sucesso com o público: mamãe Dolores, feita por Isaura Bruno, em “O direito de nascer”, de 1964, na TV Tupi.
— O elenco viajou pelo Brasil para reencenar a sequência final da novela em estádios lotados — recorda cineasta Joel Zito Araújo.
Na trama, inspirada numa radionovela cubana, a empregada Dolores cria Albertinho, filho da patroa, como se fosse seu, depois que o avô, que não aceita a gravidez da filha, Maria Helena (Nathalia Timberg), manda matar o menino. Durante toda a novela paira um mal-entendido, já que Maria Helena não entende porque Dolores levou seu filho mas, no fim, as duas fazem as pazes e dão a entender que viraram uma família. O amor entre mãe de criação e filho conquistou a simpatia dos espectadores.
Tramas escravocratas
Outro filão que revelou diversos atores negros foram as histórias centradas no período da escravidão. Folhetins como “Escrava Isaura” (1976) e “Sinhá Moça” (1986) foram sucesso de público, mas provocam debates até hoje pela abordagem que, segundo críticos, seria a partir do olhar dos senhores brancos. Algo que Zito denomina como “o mito da princesa Isabel”.
— Tem uma positividade nessas novelas que é a temática da liberdade, porque indiretamente falam também sobre racismo. Embora passem a ideia errada de que o racismo acabou com o fim da escravidão. O que não gosto é que trabalham a reiteração desse mito da princesa Isabel, do branco como grande libertador.
Para Hermes, há uma exceção entre as tramas com esse perfil: “Sangue do meu sangue”, que foi ao ar na Excelsior, em 1969:
—Ali discutiu-se menos romanceadamente a questão dos direitos raciais. Acho que mostrou o protagonismo dos negros, uma luta concreta. O enredo era politicamente mais forte.
Casal inter-racial
Uma trama contemporânea, a novela “Corpo a corpo”, de 1984, é muito lembrada pela discussão que causou dentro e fora das telas. No folhetim escrito por Gilberto Braga, Zezé Motta interpretava uma arquiteta de sucesso e com uma família bem-estruturada, mas seu romance com o personagem vivido por Marcos Paulo não foi aceito por parte do público, que chegou a hostilizar a atriz. O autor João Ximenes Braga lembra bem da novela:
— Tinha 15 anos e vivia numa espécie de bolha. Hoje sei que o fato de mal conhecer negros na época já diz muito sobre o racismo brasileiro, mas eu não tinha essa consciência ali. A comoção gerada pelo relacionamento dos personagens de Zezé Motta e Marcos Paulo me impressionou muito. Não é que eu não soubesse o que era racismo, mas não imaginava que fosse tão disseminado e tão feroz.
Marco estético
Foi apenas nos anos 1990, acredita Zito, que os folhetins alcançaram um marco estético para a representação do negro: na opinião dele, foi a primeira vez que “a novela começou a trabalhar os negros como pessoas bonitas”:
— Alguns atores foram muito fortes nesse período. O homem foi o Norton Nascimento, era o galã. A mulher era a Isabel Fillardis. Antes, não havia isso.
Norton e Isabel interpretavam um casal em “A próxima vítima”, novela de Silvio de Abreu de 1995 também comumente lembrada por ser uma das poucas a mostrar uma família negra de classe média, sem grandes estereótipos ou conflitos raciais. Na mesma época, em “Pátria minha (1994), de Gilberto Braga, uma cena incomodou os movimentos negros, que protestaram.
— Em determinada cena, o vilão, feito por Tarcísio Meira, acredita que foi roubado pelo jovem negro que trabalha em sua mansão, interpretado pelo Alexandre Moreno. Ele o acusa e humilha injustamente, e a atitude do jovem é de submissão. O movimento negro protestou dizendo que esse tipo de construção de personagem só reforçava a ideia de inferioridade. Depois, inseriu-se na novela uma cena da tia do personagem dando a ele uma aula sobre a questão racial — conta Zito.
Tramas contemporâneas
Em tempos recentes, Taís Araújo reafirmou sua importância ao ser a primeira protagonista negra da Globo em “Da cor do pecado” (2004), e a inédita Helena negra no horário das 21h em “Viver a vida” (2009). Séries como “Ó paí, ó” (2008) e “Suburbia” (2012) trouxeram numerosos elencos negros para a tela, e novelas como “Aquele beijo” (2011), de Miguel Falabella, tiveram núcleos “de destaque e bastante interessantes”, nas palavras de Hermes Frederico.
E se atores como Milton Gonçalves, Lea Garcia, Ruth de Souza, Chica Xavier e Antonio Pompêo foram — e são — importantes personagens desta história, é preciso destacar autores que deram espaço em suas tramas para estes nomes. Hermes Frederico cita o casal Dias Gomes e Janete Clair como determinantes para contar a história do negro na TV.
—Eles não restringiam os atores negros aos papeis mínimos e estereotipados. A Lea Garcia em “Selva de pedra” (1972) fazia uma secretária sofisticada. Em “Verão vermelho” (1969), o Dias criou para a Ruth de Souza um papel que discutia o preconceito — lembra.
Luiz Antonio Pilar destaca ainda a importância do Zelão, de “O bem-amado” (1973):
— Milton (Gonçalves) como Zelão era genial. Mais do que a questão racial, era um homem reprimido que queria voar. A questão racial era secundária, mas estava tudo ali, o sonho da igualdade, a ascensão. Tudo representado sem levantar bandeira — observa.
Para Zito, aliás, Milton foi um ator responsável por interpretar uma série de papéis que ajudaram a diminuir o estereótipo sobre os personagens negros.
— Ele faz um psiquiatra em “Pecado capital” (de Janete Clair, em 1975). Quando aparece um homem negro de gravata, falando bom português, elegante, cuidador, é ótimo.
O papel dos autores
Antonio Pompêo, que também interpretou o psiquiatra Percival, mas na segunda versão de “Pecado capital”, de Glória Perez, em 1998, coloca este tipo ao lado do André vivido por Lázaro Ramos em “Insensato coração” (2011):
— Eles contribuíram para dar um novo olhar ao trabalho dos atores negros. Mas teve uma reação muito forte ao personagem, né? Isso me deixou muito triste — lamenta Pompêo, que recentemente esteve no ar em “Rebelde” (2011) e “Balacobaco” (2012), da Record.
O ator acredita ser responsabilidade de autores e do público dar mais visibilidade aos negros:
— Quem manda na novela é o autor, acho que eles precisam ser mais ousados. Ao mesmo tempo, há o poder do público de referendar também.
Milton Gonçalves acredita na igualdade, mas acha que a questão da representatividade do negro na televisão passa por uma certa apatia do público.
— Ainda temos poucos negros na dramaturgia por falta de demanda.
O autor João Ximenes Braga faz uma análise mercadológica da questão:
— No último censo, 51% dos brasileiros se disseram negros ou pardos; e por tudo que li, trata-se mais de um aumento de consciência do que de um aumento populacional — destaca o autor, que acredita que quanto mais consciente o indivíduo, mais ele terá a vontade de se ver representado: — Se não se sentir representado, vai reclamar ou desligar a TV. Se escrevo entretenimento comercial, me preocupo com a possibilidade de uma parcela grande de espectadores rejeitar o produto. Aumentar a representatividade dos negros é demanda do mercado. Não existe outra opção que não atendê-la — acrescenta João.
Hoje à frente de “Heróis de todo mundo”, do Futura (leia mais na página 21), o diretor Luiz Antonio Pilar diz que há uma outra questão a ser levada em conta: a falta de negros entre autores e diretores.
— Não tem uma equipe anterior à chegada do ator com uma compreensão da comunidade negra. Não tem um autor negro escrevendo. O ator é o penúltimo elo, ele apenas vai reproduzir como instrumento aquele conceito. Se ator mudasse alguma coisa, a gente já teria mudado. Tivemos provavelmente o melhor ator brasileiro, Grande Otelo. Se ele não conseguiu...
A atriz Lea Garcia, que viveu papéis icônicos como a antagonista Rosa de “Escrava Isaura”, concorda com o diretor:
— O negro só sairá do estereótipo quando escrevermos a nossa história e tivermos nossos autores. A esperança são os jovens que estão se preparando.
Para Pilar, a contemporaneidade trouxe a evolução dos meios de produção. Antonio Pompêo também crê que isso será fundamental:
— Vamos começar a resolver o problema do mercado de trabalho quando começarmos a fazer as nossas produções de maneira independente.
Outra notícia comemorada é o destaque de atores como Lázaro Ramos, Taís Araújo e Camila Pitanga, hoje em dia protagonistas incontestáveis.
—É muito positivo ter figuras como eles entre as estrelas da TV. É uma geração com consciência e inteligência. Ter nomes como os deles exercendo influência só pode contribuir — elogia Zito.
Na contramão das opiniões dos outros entrevistados, o cineasta acredita que a teledramaturgia tem um papel importante a exercer na discussão da questão racial no Brasil.
— A novela também tem um papel civilizatório. E pode mudar ou reafirmar mentalidades. Os autores e diretores não podem negar esse papel social. Não é à toa que Glória Perez, por exemplo, abraça várias causas. “A próxima vítima” tratou da questão gay com uma delicadeza que deve ter ajudado muitas famílias a lidar com o assunto. Mas, no Brasil, o racismo parece ser o maior tabu. Há várias possibilidades positivas de drama para lidar com o assunto — diz Zito.
Como ator, Pompêo gostaria de viver outras temáticas na ficção. Como faz agora Adriana Lessa na segunda temporada de “Sessão de terapia”, do GNT, num papel que não sublinha a cor da pele do personagem.
— Temos que discutir outras situações e viver outras coisas através dos personagens. Para nós, atores, também cansa discutir racismo o tempo inteiro. Além disso, não resolve nada. Novela é entretenimento, não foi feita para resolver problema — pondera Pompêo.