RIO - Antes de começar a entrevista, Vera Holtz pede que a empregada sirva “aquelas balinhas e Nhá Bentas que comprou mais cedo” para a equipe da Revista da TV. Diante do protocolar “Não precisa, obrigada”, ela abre um sorriso e arranca gargalhada de todos:
— Imagina! Vocês achavam que na casa da Dona Redonda não ia ter doce?
Em completa sintonia com o papel de “Saramandaia”, a atriz está prestes a se despedir da bolebolense: sua explosão está marcada para o capítulo 44, previsto para ir ao ar em 6 de setembro, mas depois ela volta como a gêmea da personagem vivida por Wilza Carla na primeira versão da novela. E uma coisa é certa: Dona Redonda é um divisor de águas na carreira de Vera.
— Eu tive uma atitude nova com relação ao meu trabalho na TV. Ela ampliou minha visão sobre a profissão. Todo mundo só sabe que demoro quatro horas para ficar pronta, mas é muito mais bacana do que isso —diz.
O processo começou em fevereiro, quando Vera e outros atores foram até o Institute of Creative Technology, em Los Angeles, para desenvolver os efeitos usados na novela. Ao lado de Pablo Bioni, supervisor executivo de pesquisa e desenvolvimento de efeito especial da Globo, Vera teve o corpo escaneado para que Dona Redonda pudesse começar a surgir.
No dia a dia, a atriz está presente em todas as etapas da criação da personagem. Da maquiagem à caracterização, passando pelo figurino — são 6 metros de tecido para fazer cada roupa, além de uma equipe que pensa a alfaiataria para vestes daquele tamanho — e outras funções menos aparentes:
— Precisam suspender a Redonda? Vem a Engenharia e faz um teste de içamento comigo, com um guincho, para ver se eu aguento. Se não, tenho dublê de corpo e de ação. Como moldam a Dona Redonda para não machucar a atriz? Fisioterapeuta. Como usar as próteses de silicone e látex sem prejudicar a pele? Dermatologista. O que come e bebe para não desidratar? Nutricionista. E quem me dá isso tudo? A camareira. Ela fica do meu lado o tempo inteiro, de babá, me dando água de coco e Gatorade de canudinho na hora certa. É muita gente! Fico me sentindo muito importante — diz, rindo.
O esforço chega ainda aos à produção de arte e cenografia.
— As cadeiras precisam ser do tamanho necessário para ela sentar. E tudo que eu toco em cena precisa ter talco. A prótese da mão é de silicone, então gruda. Todos os adereços do figurino, como colares, são cobertos com tecido. Senão grudam no pescoço — lista. — É um trabalho científico mesmo. Gosto de exaltar o papel de todos os envolvidos. É uma equipe muito boa.
E se a criação de Dona Redonda dá tanto trabalho, sua “destruição” não vai ser diferente. O autor Ricardo Linhares conta que a parte técnica da explosão está sendo preparada desde que a novela era uma sinopse. A diferença é que, agora, o estouro tem contexto dramático.
— Na primeira versão, ela simplesmente inchava e estourava. Agora, criei uma base de emoção — conta Linhares, revelando alguns detalhes da cena: — Ela e Encolheu (Matheus Nachtergaele) estão comemorando “bodas de pratismo”. Mas os amigos “descomparecem” ao evento por receio que ela estoure. De revolta, Redonda come sozinha toda a comida. E, pela primeira vez, passa mal. Encolheu sai para buscar ajuda, e ela vai espionar Gibão (Sergio Guizé), descobrindo que ele tem asas. Sai correndo de casa para contar a novidade. O esforço de correr, a ansiedade de expor Gibão e o empanturramento fazem com que Redonda engasgue e não consiga respirar. Ela começa a inchar absurdamente e explode.
Vera admite que chorou muito ao ler a sequência. Mas logo voltará na pele de Dona Bitela, gêmea loura de Redonda. Na versão original, ela aparecia no último capítulo. Desta vez, Ricardo criou uma trama:
— Inventei que “pratrasmente” as duas irmãs se apaixonaram por Encolheu. Agora, Bitela vai consolar o viúvo. Fisicamente, é igual à irmã. Mas o temperamento é o oposto. É doce, cordial e conquista a todos com o seu jeitinho meigo — revela o autor.
O efeito de viver duas gordinhas na TV foi imediato: Vera perdeu 10kg. Em parte por causa de todo o exercício decorrente do esforço, mas também porque ficou assustada com sua própria pesquisa.
— Nunca quis fazer a Redona para discutir obesidade, porque a abordagem da novela não é essa, é lúdica e romântica. Mas estive nos Estados Unidos e fui a várias cadeias de fast food para observar o comportamento das pessoas. Para pegar os gestos, as mãozinhas, a postura, o jeito que andam, aquela sagacidade do olhar de querer pegar toda a comida ao mesmo tempo... É ansiedade, né? Comecei a prestar mais atenção nisso — conta.
Essa dimensão lúdica e divertida é, sem dúvida, um dos atrativos de “Saramandaia”. Mas sua vertente política também foi fator importante para colocar a novela em lugar de destaque na história da teledramaturgia, em 1976. Já a nova versão acabou se beneficiando ao estrear exatamente em meio às manifestações no país.
— Foi uma feliz coincidência essa sintonia. A realidade entrou na ficção e vice-versa. São raros os momentos em que a gente tem isso na vida — opina a atriz, declarando-se uma entusiasta das mudanças: — Eu sou bolebolense na novela, mas sou saramandista na vida (risos)! Estamos vivendo um momento de mudança de paradigma no mundo. A minha geração participou disso na nossa época. É vibrante ver essa juventude represada que, de repente, abriu as comportas.
E se é para falar sobre mudança de paradigma, a atriz traz o conceito para a televisão ao relembrar sua personagem anterior. Os olhos de Vera brilham ao falar de “Avenida Brasil”, trama de João Emanuel Carneiro exibida no horário das 21h no ano passado, e que foi um fenômeno de repercussão entre os espectadores. Na pele de Mãe Lucinda, ela diz que tinha noção, diariamente, no set, de que aquele grupo fazia algo especial.
— Sempre soube que “Avenida Brasil” era algo novo. Falava: “Estamos fazendo uma coisa que não vai se repetir tão facilmente”. Era um elenco pequeno, afinadérrimo, uma captação de imagem diferente, uma liberdade de interpretação, os personagens e os núcleos todos ligadinhos... E todo mundo trabalhou a novela inteira, teve cena bacana. Isso é muito importante para o ator — defende.
Vera faz piada ao recordar-se do último capítulo da trama, que teve direito até a reportagem no “Jornal Nacional”:
— A única comparação que consigo fazer daquele dia é com uma final de Copa do Mundo. Entrei ao vivo dando entrevista para a Glória Maria! Ali tive certeza que estava no alto de um Olimpo, senti o flanar das bandeiras, falando como um craque pela minha equipe. E aquela partida nós ganhamos!
Formada em Artes Plásticas antes de começar no teatro, Vera diz que sua formação sempre esteve ligada à área. Sua coleção de obras e móveis de design fica em sua casa, em São Paulo. Mas também dá para perceber suas paixões no escritório do Rio de Janeiro, que tem livros de arte espalhados pelas mesas e objetos como a Ghost chair, de Philippe Starck.
Seus gostos, no entanto, vão do erudito à cultura pop: a atriz conta que “o que mais gosta na vida” é de super-heróis. Tem bonecos enormes de Batman e Super-Homem — um de cada lado de sua cama, ela conta —, além de Hulk e Homem de Ferro. Fala orgulhosíssima que Alexandre Moraes, o supervisor de projetos de efeitos especiais da Globo que esculpiu as próteses de Dona Redonda, já trabalhou na Marvel construindo alguns destes bonecos. A falta de preconceitos tem a ver com o ensinamento que Vera diz seguir desde jovem: “a gente só gosta do que conhece”.
— Tento conhecer e aprender de tudo. Minha família é muito longeva. Preciso de atividades que me acompanhem a vida inteira. Estou com 61 anos. Daqui a pouco, o tempo vai começar a ficar imenso para mim. Então, vou aprendendo mais coisinhas para levar até lá.