RIO - Esquecido no lote de filmes intimistas que o estúdio Metro-Goldwyn-Mayer, a falida MGM, levou às telas na década de 1990, “Ninguém é perfeito”, de Joel Schumacher, foi a inspiração para a peça “A porta da frente”, em cartaz a partir deste sábado, às 20h, no Oi Futuro Flamengo. Ensaio sobre diferenças, sua trama, escrita por Julia Spadaccini, faz um trançado de tolerância, diversidade sexual e amizade, mesmos elementos do longa de Schumacher, no qual um transformista (Philip Seymour Hoffman) ajudava um policial homofóbico (Robert De Niro). Assinando também a direção, em parceria com Marco André Nunes, o ator Jorge Caetano — parceiro de Julia em textos como “Aos domingos”, aclamado pela crítica — vive Sasha, crossdresser que vira uma espécie de anjo redentor na vida de seus vizinhos.
— Julia e eu temos a preocupação de falar nos tipos característicos da contemporaneidade. Sasha surge como um exemplo de homem que adota visual e comportamento femininos, mas continua a ter atração por mulher. Vestir-se com roupas femininas faz com que Sasha incomode — diz Caetano.
Parceiro de Julia na Cia. Casa de Jorge, Caetano dá a Sasha um perfil lúdico, ao fazer do personagem um libertário, capaz de usar o rock’n’roll para estreitar fronteiras com os que estranham seus modos. No enredo de “A porta da frente”, em cartaz até 13 de outubro, o primeiro a estabelecer um vínculo afetivo com Sasha é Rui (Rogério Freitas), chefe de uma família em ruínas. Sua mulher, Lenita (Malu Valle), é a primeira a hostilizar o recém-chegado à vizinhança, por pura homofobia.
— Desde que li uma reportagem sobre um crossdresser, eu queria trabalhar a imagem de um homem que usa calcinha, pinta as unhas, maquia-se, mas não é gay. E queria que essa figura fosse a mais bem resolvida da peça — diz Julia.
Em “A porta da frente”, o conservadorismo de Lenita impede que ela enxergue os problemas de seus filhos (vividos por Nina Reis e Felipe Haiut) e de sua mãe (Maria Esmeralda Forte). Impede ainda que ela veja o esforço de Sasha para ajudar Rui a voltar a sorrir. É por meio do rock de Lou Reed que o crossdesser encontra uma ponte para devolver a Rui a alegria perdida.
— Usamos duas canções do álbum “Transformer”, “Perfect day” e “Satellite of love”, que traduzem os sentimentos da peça. Lou Reed tem um toque de bardo marginal, que acabou se tornando fundamental à nossa história. A Julia criou um poema para Sasha que é quase beatnik, no qual eu falo “Se liberte antes que tudo acabe e os vermes comam o que sobrar” — diz Caetano, que começou a carreira em “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” (1989), com Amir Haddad.
Diretor desde 2007, quando montou “Não vamos falar sobre isso agora”, também escrito por Julia, Caetano usou filmes sobre transexualidade como “Laurence anyways” (2012), de Xavier Dolan, como base de pesquisa para Sasha.
— “Laurence anyways” ajudou na construção da identidade visual, mas seu personagem tinha um traço mal resolvido que divergia de Sasha — diz Caetano, que viveu um transexual no musical “Outside”, de Pedro Kosovsky. — Sasha tem seus pontos de fragilidade. Mas é alguém que tenta tirar o melhor das pessoas. (Rodrigo Fonseca)