RIO - Tempo me disse que só com tempo a gente chega lá. Assim cantava Roberto Ribeiro (1940-1996) em “Tempo ê”, samba que estreou em disco na sua voz, em 1976. Um dos autores da canção, o baiano Nelson Rufino inevitavelmente se tornou, ele próprio, um dos melhores exemplos desses versos. Só agora, há 50 anos no ofício de compositor, e aos 70 de idade, ele dá a cara a tapa e vai defender sua obra em DVD, com o recém-lançado “Minha vida”, gravado ao vivo no Teatro Castro Alves, em Salvador, em agosto de 2011. Cantor nascido da necessidade, “porque a pirataria de disco veio forte”, Nelson interpreta canções bem conhecidas do grande público nas vozes de Ribeiro — “Vazio (está faltando uma coisa em mim)” e “Todo menino é um rei”, que, assim como “Tempo ê”, é parceria com Zé Luiz — e de Zeca Pagodinho — “Verdade” (com Carlinhos Santana) e “Uma prova de amor” (com Toninho Geraes).
Essa é só a parte mais conhecida da produção desse sambista que contou, ao longo da carreira, com parceiros como Zeca, Martinho da Vila e Jorge Aragão. Todos eles, por sinal, marcaram presença no palco, na gravação do DVD, junto com amigos e admiradores seus, como Ivete Sangalo, Carlinhos Brown e Daniela Mercury.
— Talento e sorte têm que estar lado a lado — filosofa o cantor e compositor, num quiosque na Praia de Copacabana, acompanhado de uma cerveja.
A sorte já estava com Nelson Rufino na primeira de suas várias visitas ao Rio: em 1962, para tentar o futebol.
— Treinei em dois times e vi que não dava, não. E a saudade da minha mãe começou a doer. Eu me organizei para voltar e, nessa dor, compus minha primeira música, “Bahia, meu primeiro travesseiro”, que ficou inédita — conta. — Mandei uma cartinha contando essa história, e a turma começou a dizer: “Nelsinho agora é compositor.” Meu irmão era barbeiro no Tororó, onde tinha um bloco. Quando cheguei, me deram a missão de fazer um samba para esse bloco. E não é que eu fiz?
Quando o bloco virou a Escola de Samba Filhos do Tororó, Rufino fez seu primeiro samba-enredo, “Portais da Bahia”, com o qual ela foi campeã (“Eu tinha 22 anos e chorava vendo a escola desfilar com meu samba”, diz). Mais três sambas-enredo para o Bloco Apaches, e aquele rapaz virava estrela entre os bambas de Salvador.
— Em 1967, Martinho da Vila quebrou as amarras do samba no Rio de Janeiro. Na Bahia, a gente veio se esforçando. Vivemos uma década de escolas de samba. Foi apenas um movimento, não uma raiz, como no Rio — analisa.
Para Rufino e muitos outros compositores baianos daqueles tempos, a forma de dar vazão a tantas composições era apostar na “música de meio de ano”.
— Passava o carnaval, a gente arrumava as trouxas e pegava a BR-116 para tentar mostrar alguma coisa no Rio.
Estreia em disco
Nisso, em seu álbum de 1971, Eliana Pittman, uma das cantoras mais badaladas da época, promoveu a estreia de Nelson Rufino em disco, gravando “Alerta mocidade”. Foi a última faixa do LP, que ainda trouxe “Aruê-lá” (de Ederaldo Gentil, companheiro de Rufino na cena do samba de Salvador) e “Por um segundo” (de um novato Gonzaguinha). Eliana até hoje sabe cantar o samba de Nelson Rufino. E se lembra da época:
— Eu fazia muito teatro, e os compositores chegavam a mim. Mas eu só gravava aquilo de que gostava, as canções tinham que ter boas melodias — diz, deixando escapar uma queixa. — Pô, o Rufino podia ter me chamado para participar desse DVD dele!
Mais tarde, o compositor viria a ter sua primeira grande descoberta: Roberto Ribeiro. Foi num encontro nacional dos compositores de samba, no Rio.
— Quando eu ouvi o Roberto cantar, fiquei apaixonado. “Meu Deus, que voz é essa?”, eu me perguntava. “Eu tenho que fazer uma música para esse cara!” E aí, em 1976, Deus mandou “Tempo ê”.
O disco do cantor para aquele ano já estava fechado. Mas Rufino foi aconselhado pelos produtores a gravar uma fita com a música e mandar para ele. Feito isso, o baiano foi ao correio numa segunda-feira de manhã e postou um pacote com a fita cassete, embrulhada.
— Quando é no dia seguinte, ligo para avisar que tinha mandado a fita e me dizem: “Ela já bateu aqui. (O produtor) João de Aquino e Roberto Ribeiro ouviram, e a música já está no disco” — recorda.
Logo que conseguiu, Rufino deu uma de suas clássicas fugidas ao Rio, para ver como tinha ficado a música. E foi enfim apresentado a Roberto Ribeiro. O compositor tinha 33 anos, cabelo e barba ainda bem pretos.
— E toca Roberto a procurar um Batatinha, um Cartola. Ele nunca ia imaginar que eu era contemporâneo dele! Nossa amizade nasceu ali — conta Rufino.
Da mesma forma que “Tempo ê”, “Todo menino é um rei” também entrou no disco de Roberto em cima da hora. Logo que ouviu a fita com o samba, em 1978, o cantor chamou seu arranjador e foi para o estúdio gravá-la.
— Quando eu ouvi a gravação pela primeira vez, desabei em prantos — diz Rufino, que, no disco seguinte, de 1979, forneceu ao cantor outro (na verdade, um grande) sucesso: “Vazio”, que ajudou o LP a vender 450 mil cópias.
Mesmo assim, Rufino não largou o emprego como encarregado da unidade de ferramentas em uma metalúrgica.
— A música foi um hobby que deu certo em minha vida. Quando batia a inspiração, eu corria para o banheiro e me trancava. Cansei de fazer música no sanitário da empresa. No ano de “Todo menino é um rei”, os supervisores se reuniram para perguntar: “Como você fez essa música se não teve tempo?” Eu disse: “Coisas de Deus...”
“Todo menino...”, por sinal, começou a ser feita na mudança da sede da metalúrgica de um bairro para outro. Rufino diz que a inspiração às 9h15m da noite. De cara, veio o refrão.
— Aí, a empresa me mandou para São Paulo. Todo dia um cara vinha de manhã com uma kombi, me pegar para visitar algumas metalúrgicas. De repente, veio o resto da música. Saí correndo para arrumar papel e caneta.
No começo dos anos 1980, aconteceu outro dos grandes encontros da vida de Nelson Rufino: com Zeca Pagodinho.
— Jacira, grande amiga minha aqui do Rio, armou uma feijoada para me apresentar à turma que estava começando. Arlindo Cruz, Luiz Carlos da Vila... Eu chego lá e sou apresentado ao Zeca, que tinha 22 anos. E ele meteu logo uma sugesta, para eu entrar no partido alto. Botei a mão no surdo e disse: “Gente, não sei fazer partido alto!” — relata. — Uma vez, eu disse: “Jamais o carioca vai fazer samba de roda, e nem o baiano, partido alto”. Por causa desse impacto, rolou essa empatia, nasceu essa amizade.
Ao passar a lua de mel em Salvador, Zeca foi apresentado a “Gota de esperança” (parceria do baiano com Orlando Rangel), que acabaria gravando em seu disco de 1987, “Patota do Cosme”. No seguinte, “Jeito moleque” (1988) cantou “Se tivesse dó”, parceria dos dois. Mas nenhuma dessas fez tanto sucesso quanto “Verdade” (“Descobri que te amo demais/ Descobri em você minha paz”), que o sambista gravou no CD “Deixa clarear”, de 1996, e até hoje não pode deixar de fora dos shows. Zeca conta que, um dia, estava entrando no banho e Rufino, em outro lado da sua casa, começou a cantar a música.
— Eu perguntei o que era aquilo e ele disse: “Nada, estou só aqui brincando com as crianças”. Peguei uma filmadora, gravei e mandei para o Rildo (Hora, produtor) — conta. — O Nelson Rufino é dez. Quando ele chuta, é para gol.
A tradição do compositor de entrar nos discos em cima da hora se manteve em “Tabaroinha” (2012), da sambista baiana Mariene de Castro. Para esse CD, Rufino compôs “Amuleto da sorte”.
— E só fiz essa porque a Mariene me deu um esporro clássico. Eu levei três músicas para ela, mas o compositor sabe quando sangra o cantor. Eu vi que eu não tinha sangrado Mariene. Aí, no portão de casa, ela disse: “Pô, pai, você faz música de amor pra todo mundo, não vai fazer pra sua filha?”. Saí dali com os olhos rasos d’água — diz ele, que entrou no primeiro bar para tomar uma gelada. — No terceiro copo, veio. Me tranquei em casa e fiz a música.
— Eu estava fechando o CD quando ele chegou com “Amuleto” — confirma Mariene. — Rufino sabe falar com simplicidade do amor e da vida. Ele leva o samba da Bahia para o Brasil.
— Se Gilberto Gil diz que a Bahia deu régua e compasso a ele, digo que o Rio de Janeiro me deu o dengo e a manha do samba — rebate ele, admitindo se sentir mais brasileiro que baiano.
Leve boemia
Nelson Rufino deixou a metalurgia em 1985, depois de uma hepatite.
— Quando voltei, o campo estava minado na empresa, e pedi demissão. Foi um tempo difícil que eu passei até que Deus me desse “Verdade”. Aquela música mudou a minha vida.
Hoje, Rufino se dedica à música e a uma leve boemia. Não fuma e não gosta de cachaça, vai só na cerveja, que costuma beber com amigos em Salvador, na feira de São Joaquim e no bar de Erlon, perto de casa, onde promete fazer sessão do DVD.
— Eu sou boêmio mesmo! Minha mulher de vez em quando dá umas bufinhas, mas não tem jeito. No dia em que bate a vontade de fazer um samba, de sair por aí, tem que sair mesmo! — defende esse baiano ainda em busca do samba que vá superar “Verdade”. — Conhece um cara feliz? É Nelson Rufino. Eu entro muito mais na igreja para agradecer do que para pedir.